Anselmo Borges O Calvário do mundo
(Anselmo Borges, en DN).- 1- Perante o horror todo do mundo, guerras e cidades a desmoronar-se, crianças a jorrar sangue e a gritar de dor ao colo de pais perdidos e a fugir não sabem para onde, violações, crucifixões, fome e mortes, terror e impotência, a palavra que sobe à mente: "Um calvário!" Às vezes, vêm ter comigo pessoas destroçadas e contam e contam e contam... destroçadas: "Sabe? A minha vida tem sido um calvário." E parte-se-me a alma.
2- Hoje, Sexta-Feira Santa, o que se lembra é o calvário de Cristo e, nele, os calvários todos da história. Perante o horror da morte a aproximar-se, diz o Evangelho que Jesus "começou a sentir-se apavorado e a angustiar-se" e rezava: "Meu Pai, tudo te é possível, afasta este cálice de mim. Mas faça-se não o que eu quero, mas sim o que Tu queres." E morreu, gritando esta oração: "Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?"
3- Segundo a fé cristã, não faz sentido lembrar a Sexta-Feira Santa sem a esperança da Páscoa. Os discípulos viveram na perplexidade e angústia o calvário de Cristo. Foi lentamente que, reflectindo em tudo quanto tinham vivido com Jesus, e meditando sobre a sua vida, a sua mensagem, o modo como se dirigia Deus - Amor incondicional, Pai e Mãe -, o modo como se relacionou com todos, o modo como se dirigiu para a morte, fizeram a experiência de fé de que esse Jesus não morreu para o nada, mas para dentro da plenitude da vida em Deus. Deus não é um Deus de mortos, mas de vivos e da Vida. Essa experiência foi tão intensa e avassaladora que disso deram testemunho até à morte.
4- Segundo Ernst Bloch, o ateu religioso que tive o privilégio de conhecer em Tubinga, o cristianismo "venceu em grande parte graças à proclamação de Cristo: "Eu sou a Ressurreição e a Vida". Imperava então um desespero apaixonado, que hoje nos parece incompreensível e representa um acentuado contraste com a nossa indiferença. Mas nada impede que dentro de cinquenta ou cem anos (porque não cinco?) volte essa neurose ou psicose de angústia da morte, de tipo metafísico, com a pergunta radical: para quê o esforço da nossa existência, se morremos completamente, vamos para a cova e, em última instância, não nos resta nada?"
5- Pergunta inquietante e inelutável: porque temos de morrer? E, se é inevitável, que atitude tomar perante essa certeza da morte? Será que vivemos simplesmente para morrer e ficar mortos, definitivamente mortos para sempre? Aparentemente, é assim. Mas, depois, erguemo-nos desde o mais fundo de nós, protestando e com esperança. Lá está Unamuno agarrando-se à vida e a gritar: "O meu eu, o meu eu, ai que me arrebatam o meu eu!" J. A. Pagola lembra uma palavra sóbria e honrada do escultor Eduardo Chillida: "Quanto à morte, a razão diz-me que é definitiva. Quanto à razão, a razão diz-me que é limitada." E é legítimo esperar, tal é a força que impulsiona a viver e viver sempre. Ou será tudo contraditório e absurdo? Sim, na morte, a evidência é o cadáver, mas quem se contenta com o cadáver?, perguntava também Ernst Bloch.
6- Enquanto formos mortais, havemos de perguntar por Deus, concretamente ao pensar nas vítimas inocentes. Como escreveu o agnóstico M. Horkheimer, um dos fundadores da Escola Crítica de Frankfurt, "se tivesse de descrever a razão por que Kant se manteve na fé em Deus, não saberia encontrar melhor referência do que aquele passo de Victor Hugo: uma anciã caminha pela rua. Ela cuidou dos filhos, e colheu ingratidão; trabalhou, e vive na miséria; amou, e vive na solidão. E, no entanto, está longe de qualquer ódio e rancor, e ajuda onde pode... Alguém vê-a caminhar e diz: Ça doit avoir un lendemain!... Porque não foram capazes de pensar que a injustiça que atravessa a história seja definitiva, Voltaire e Kant postularam Deus - não para eles mesmos".
7- Eu tive uma aluna muito inteligente, que é ateia. Na sua abertura de espírito, convidou-me uma vez para ir dar uma aula à sua universidade sobre Deus, a religião, a esperança. Depois, fomos jantar e voltámos a falar sobre a morte e a esperança. E ela: morremos, como é natural, como um gato também morre. E eu relembrei-lhe a Escola Crítica de Frankfurt e as vítimas inocentes e todos aqueles que morreram sem viver, esmagados pela violência, pela fome, pela guerra; há uma dívida de justiça para com essas vítimas - quem pagará essa dívida? E continuámos a falar sobre tanta coisa... Já noite dentro, na despedida, ela atirou: sim, para esses, aqueles e aquelas de que falou, ao menos para esses deveria haver alguma coisa...
Uma exigência moral. Mas, afinal, "esses", de uma maneira ou outra, somos nós todos.
8- No meio da perplexidade, fico com Kant: "A balança do entendimento não é completamente imparcial, e um braço da mesma com o dístico "esperança do futuro" tem uma vantagem mecânica que faz que mesmo razões leves que caem no seu respectivo prato levantem o outro braço que contém especulações em si de maior peso. Esta é a única incorrecção que eu não posso eliminar e que eu na realidade não quero abandonar."
9- Perante "a dramática ponderação entre o sim e o não", um filósofo grande de base kantiana, o jesuíta José Gómez Caffarena, teve uma razão decisiva para inclinar a balança para o sim: Jesus de Nazaré. E, assim, deixou escrito, na sua obra monumental, O Enigma e o Mistério: "O cristianismo teve o imenso acerto de apresentar-se como a tradição de um ser humano que enfrentou o mal com enorme dor, mas com prevalente esperança." Recentemente, também Hans Küng, o teólogo rebelde e o mais crítico do século XX, já próximo do seu próprio fim, disse que, para ele, morrer é "descansar no Mistério da Misericórdia de Deus". Assim acredito eu também.