Anselmo Borges Silêncio
(Anselmo Borges, en DN).- Em 1549, São Francisco Xavier esteve no Japão e 60 anos depois já havia 300 mil católicos. Em 1614, começou uma perseguição brutal, para que renegassem a fé. Eram submetidos a dois suplícios: o da fossa e o da cruz. No primeiro, os condenados, envoltos em panos e amarrados fortemente por cordas e com um pequeno corte por detrás da orelha, donde saíam gotas de sangue, eram suspensos pelos pés, com a cabeça para baixo e para dentro de uma cloaca, podendo ficar assim dez dias até morrerem. A outra tortura: amarrados numa cruz erguida frente ao mar, ficavam abandonados às ondas, que iam e vinham esmagadoramente contra eles, no frio e na fome, dia e noite, até à morte.
Em 1966, o escritor católico Shusaku Endo, que foi proposto para Prémio Nobel da Literatura, escreveu um romance com o título Silêncio, agora em filme com o mesmo nome, de Martin Scorcese. Têm um fundo histórico. O padre jesuíta Cristóvão Ferreira apostatou, não resistindo à tortura da fossa, o que causou enorme comoção na Europa. Em plena perseguição, dois jovens jesuítas, Rodrigues e Garpe, oferecem-se para partir: move-os fundamentalmente saberem o que se passou na verdade com Ferreira, que tinha sido seu formador no seminário e que tanto admiravam.
O livro e o filme são obras cimeiras, de rara intensidade dramática e comoção, mas não admira que hoje não se perceba essa intensidade, porque, numa sociedade do bem-estar material e numa cultura do provisório e da pós-verdade, não há abertura para as decisivas questões metafísico-religiosas. Ficam aí quatro notas sobre o que penso serem os seus temas essenciais.
1. A primeira refere-se ao que lhes dá o título: silêncio. Note-se que se trata de Silêncio, sem artigo, simplesmente Silêncio. No meio daquele indescritível horror de sofrimento, Deus não diz nada, mantém-se num silêncio de chumbo e de breu, obstinadamente calado. A ponto de o padre Rodrigues ser tentado pela dúvida atroz, chegando a perguntar se não foi ao... nada que andou a rezar.
Perante a dor, a maldade bruta, uma natureza cega que arrasa num tsunami milhares de pessoas, não distinguindo culpados nem inocentes, o crente percebe que a fé é um combate e que se confronta, à maneira de Job, com um Deus incompreensível. "Incompreensível que Deus exista, incompreensível que não exista", escreveu Pascal. Se existe, porque é que há tanto mal? Mas, se não existe, então, em última análise, é para o nada que caminhamos e não há sentido último. E donde vem o bem?
2. Para Shusaku Endo, a personagem deve representar Judas. Chama-se Kichijiro e é quase omnipresente: quando parece ter desaparecido, ele está lá outra vez. Viu a família destruída pela perseguição e abjurou. Depois, quase atordoado, anda pela vida, atraiçoando aqui e ali, mas sempre a arrepender-se e a pedir perdão e a confessar-se; o padre tinha pisado o ícone cristão, mas ele ainda acredita que é padre e o pode absolver. Depois de reconhecer que Deus fez uns para heróis e outros para cobardes e ele é um destes, um cobarde, faz esta pergunta imensa: porque é que nasci neste tempo de perseguição? O padre também reconhece que aquele pobre diabo, se tivesse nascido em tempos normais, teria sido um cristão "conformado e feliz".
No livro e no filme, perguntamos a nós mesmos, bem lá no fundo, se não somos todos o Kichijiro. O que faríamos se estivéssemos lá? Porque, numa sociedade livre e no conforto, é fácil ser herói a partir de fora. Mas, quando se está dentro, quem está verdadeiramente preparado para ser realmente herói, isto é, digno em circunstâncias nas quais a alternativa é "abjurar" ou ser morto? Não apenas em relação à fé religiosa, mas em relação à defesa da dignidade humana pura e simplesmente? Quem nunca renegou?
3. Ele há a tortura física, ele há a tortura psicológica, mas a mais terrível é a tortura da consciência. É a ela que o padre Rodrigues é submetido. Apanhado, no meio de tanto horror, esmagado pelo cansaço, rasgado pela noite da dor, mas fiel à sua missão e à fé, tudo indica que estava disposto a dar a vida no martírio. Mas as autoridades japonesas não querem mártires, querem que os católicos e sobretudo os padres reneguem publicamente, calcando um ícone com as imagens de Cristo e da Virgem. Assim, numa chantagem estudada e num cinismo requintadamente depurado, começa o inquisidor, com a ajuda do ex-padre Ferreira, a torturar-lhe a consciência, dizendo-lhe que, se fosse um padre a sério, faria como Cristo, dando a vida pelos outros, e que não é nada, trata-se apenas de uma formalidade, pois até pode continuar no seu íntimo a professar a fé e, sobretudo, que, se calcar, aqueles cristãos que gritam de dor serão libertados.
É claro que, subjectivamente, se calcar, entendemo-lo e Deus também. E objectivamente? Ele acaba por ouvir uma "fala" de Cristo, o calcado, o pisado da História por causa dos outros e quebrando o silêncio: "Pisa-me." E ele, atenazado, ouvindo o grito dos que Cristo mandou amar, pisou, caindo em abraço terno ao Cristo calcado. Um mártir da consciência torturada a favor dos irmãos. A mulher japonesa, que lhe foi dada pelas autoridades, entendeu e, com ele já no féretro, deixou escorregar secretamente para dentro um pequeno crucifixo (este final é só do filme).
4. Eram tempos de miséria no Japão. A perseguição foi também causada pelo receio da classe dominante frente à dinâmica democratizante do Evangelho, respondeu-me uma vez no Japão um japonês. Receio acrescentado por a religião poder ser a porta aberta a imperialismos ocidentais.
Evidentemente, o cristianismo precisa de ser inculturado. Como acaba de dizer o padre Adolfo Nicolás, ex-superior-geral dos jesuítas: "Na Ásia, não há evangelização possível sem alianças com o budismo e o shintoísmo."