"Hoje, o pecado original não é pensável" A Imaculada Conceição e a esperança
"O pecado de Adao tornou a humanidade toda 'massa damnata', massa condenada, ao inferno, do qual só alguns são libertados pela graça imerecida de Deus"
"Portanto, se não há pecado original no sentido tradicional, qual é o sentido da festa da Imaculada Conceição?"
"O que de facto se celebra é Maria como a primeira cristã e a esperança de que no final se realize o Reino de Deus na sua plenitude, pondo termo a todo o calvário do mundo"
"O que de facto se celebra é Maria como a primeira cristã e a esperança de que no final se realize o Reino de Deus na sua plenitude, pondo termo a todo o calvário do mundo"
| Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia
Santo Agostinho era um génio. Mas a sua influência foi ambígua, para o bem e para o mal. Pense-se no seu pessimismo, que o levou à convicção de que o prazer sexual implica sempre algo de pecaminoso, pois a finalidade da relação sexual deveria ser unicamente a procriação.
Baseado na tradução latina da Carta de São Paulo aos Romanos, 5,12, referente a Adão: "no qual todos pecaram", Santo Agostinho, contra o texto original grego, que diz: "porque todos pecaram", interpretou que o pecado de Adão não é apenas o primeiro da série de todos os pecados cometidos pelas pessoas ao longo da história, mas que esse pecado é um pecado hereditário, de tal modo que é um pecado de todos os homens e mulheres, transmitido por geração pelo acto sexual. Portanto, o recém-nascido não é inocente, nasce em pecado, do qual, para evitar a condenação eterna, só o baptismo o pode libertar. Foi pelo pecado de Adão que veio todo o mal ao mundo, incluindo a morte.
Esse pecado tornou a humanidade toda “massa damnata”, massa condenada, ao inferno, do qual só alguns são libertados pela graça imerecida de Deus. Pelo pecado, Adão destruiu um bem que podia ser eterno, tornando-se merecedor, ele e todos os homens nele, de um mal eterno:
"Daqui - escreve ele -, a condenação de toda a massa do género humano, pois o primeiro culpado foi castigado com toda a sua posteridade, que estava nele como na sua raiz. Assim ninguém escapa a esse suplício justo e devido, a não ser por uma misericórdia e uma graça indevida. E é tal a disposição dos homens que nalguns aparece o valor de uma graça misericordiosa e nos outros o de uma justa vingança".
Assenta aqui a doutrina da dupla predestinação, que continuaria radicalizada sobretudo em Calvino. Na salvação de alguns, revela-se a misericórdia graciosa de Deus; na condenação eterna da maioria, manifesta-se a justiça do mesmo Deus.
É neste enquadramento que surge a festa que se celebrou no passado dia 8 de Dezembro, com feriado nacional: a Imaculada Conceição de Nossa Senhora: Maria, a mãe de Jesus, seria uma excepção, pois foi concebida sem pecado.
Hoje, o pecado original não é pensável. De facto, como se pode pensar no pecado original, causa de todos os males, incluindo a morte, no contexto da evolução, segundo a qual o ser humano aparece num processo imensamente lento? O pecado original dos primeiros homens — quem foram os primeiros? — implicaria um acto de liberdade plena, que eles, pensando precisamente na evolução, não tinham... E não havia morte, se não houvesse o primeiro pecado de Adão e Eva? Mais: quem acredita verdadeiramente que uma criança acabada de nascer foi concebida em pecado e nasce com o pecado dentro dela?
O chamado pecado original só faz sentido, se pensarmos que aquele menino, aquela menina, nascem inocentes, mas para um mundo onde já há pecado e, assim, vão ser contaminados por esse ambiente de pecado, como um não fumador é contaminado ao entrar num ambiente em que se fuma. Aliás, as pessoas, postas a pensar, acreditam verdadeiramente no pecado original no sentido tradicional?
Permita-se-me que conte uma pequena história que se passou comigo. Fui fazer uma palestra em Aveiro. Na altura das perguntas e esclarecimentos, uma senhora, embora eu não tivesse abordado sequer o tema, acusou-me: “Você negou o pecado original”. Eu disse-lhe que na palestra nem tinha abordado a questão, mas voltei-me para ela e perguntei-lhe: “A senhora é mãe?” E ela: “Sim, sou mãe de duas filhas”. Disse-lhe: “Parabéns! Agora diga-me: acredita sinceramente que elas foram geradas em pecado e que a senhora andou com o pecado dentro de si durante dezoito meses?” Ela: “Eu? Eu não.” Observei-lhe: “Está a ver? Afinal, quem nega o pecado original é a senhora, não eu.”
Com a doutrina do pecado original, chegava-se a esta contradição: por um lado, havia a obrigação moral de relações sexuais fecundas, em ordem ao cumprimento da ordem de Deus: crescei e multiplicai-vos; por outro, havia o receio de, precisamente desse modo, contribuir para o aumento de pessoas com o pecado original; havia ainda a agravante de contribuir para as condenações ao inferno, caso os recém-nascidos morressem antes de receber o baptismo: em muitas ocasiões Santo Agostinho afirma a condenação eterna das crianças que não foram baptizadas... Lentamente, ele próprio apercebeu-se de que era tal o horror dessa doutrina que elaborou a doutrina do limbo para as crianças que morriam sem baptismo: não iam para o inferno, mas também não gozavam da plenitude da vida em Deus...
Portanto, se não há pecado original no sentido tradicional, qual é o sentido da festa da Imaculada Conceição? O que de facto se celebra é Maria como a primeira cristã e a esperança de que no final se realize o Reino de Deus na sua plenitude, pondo termo a todo o calvário do mundo, à ecúmena do sofrimento sem nome, a esse cortejo infindo de ódio, de malvadez, de vingança, de loucura, de pecado, que realizou guerras mundiais, Auschwitz, o Goulag, a Ucrânia..., todo o mal e toda a tragédia e todas as lágrimas que causamos uns aos outros e o número incontável de vítimas inocentes...
Essas vítimas gritam, não por vingança, mas por justiça. E só Deus, força criadora infinita, pode responder, pela ressurreição dos mortos, a esse clamor da história do sofrimento humano. Para que a história do mundo e da humanidade não desemboque pura e simplesmente no absurdo do sem sentido.