Crónicas pára e pensa Hermenêutica feminista das religiões e seus textos

Hermenêutica feminista das religiões e seus textos
Hermenêutica feminista das religiões e seus textos

"É claro que a hermenêutica feminista tem de ser uma hermenêutica da suspeita. Essa hermenêutica é particularmente crítica com as imagens patriarcais de Deus. De facto, se Deus é masculino, o homem-varão acaba por ser divinizado"

"Não é de suspeitar que religiões orientadas por homens e textos que têm homens como autores maltratem as mulheres, lhes sejam pouco favoráveis e as tornem invisíveis, as considerem inferiores e as coloquem em lugares subordinados?"

"E o que é que pode impedir os crentes de se dirigirem a Deus como Mãe? Deus é Pai/Mãe"

A religião/religiões só têm sentido se e na medida em que são factor de libertação/salvação. Ora, a gente fica tremendamente impressionado, quando observa o que de negativo tantas vezes as religiões e os seus textos dizem sobre as mulheres.

Newsletter de RD · APÚNTATE AQUÍ

Que é que isto quer dizer? É essencial interpretar e não tomar de modo nenhum à letra. Aí ficam, pois, alguns princípios de hermenêutica feminista das religiões e seus textos.

Pressuposto essencial é, evidentemente, a compreensão de que os textos sagrados não são ditados de Deus, tornando-se, pois, claro que, sem interpretação, eles se convertem, inevitavelmente, em textos fundamentalistas. Os textos sagrados têm de ser lidos de modo crítico e situados no seu contexto histórico.

Um livro sagrado, por exemplo, a Bíblia, só tem validade última e só encontra a sua verdade adequada enquanto todo e na sua dinâmica global. A argumentação com fragmentos pode por vezes tornar-se inclusivamente ridícula. Assim, princípio hermenêutico essencial e decisivo das religiões e dos seus textos é o do sentido último da religião, que é a libertação e salvação. O Sagrado, Deus, referente último do religioso, apresenta-se como Mistério plenamente libertador e salvador. É, pois, à luz desta intenção última que as religiões e os seus textos têm de ser lidos, concluindo-se que não têm autoridade aqueles textos que, de uma forma ou outra, se apresentam como opressores e discriminatórios. Então, não sendo normativos, têm de ser evitados nas celebrações religiosas.

Portanto, é claro quea hermenêutica feminista tem de ser uma hermenêutica da suspeita. Não é de suspeitar que religiões orientadas por homens e textos que têm homens como autores maltratem as mulheres, lhes sejam pouco favoráveis e as tornem invisíveis, as considerem inferiores e as coloquem em lugares subordinados?

Ela tem também de ser uma hermenêutica da memória. Lembra as vítimas, todas as vítimas. Exige, portanto, uma leitura da História no seu reverso, que é a História dos vencidos. Normalmente, o que aparece, como é sabido, é a História dos vencedores, onde, por isso, não cabem as mulheres nem as vítimas do sistema. Assim, como escreveu Juan Tamayo, “a memória das mulheres vítimas do patriarcado é já em si um acto de reabilitação, de devolução e reconhecimento da dignidade negada”. Na reconstrução da História, é preciso encontrar o papel das mulheres, activo e criador, mas oculto e silenciado.

Violencia machista en la historia del arte - Principia

A leitura feminista dos textos sagrados faz-se a partir dos movimentos de emancipação da mulher e, portanto, dentro da luta pelos direitos humanos, que, sendo indivisíveis, exigem sociedades que ponham termo a todo o tipo de discriminação, sem esquecer que as estruturas discriminatórias da mulher são múltiplas e multiplicativas, como bem viu a teóloga E. Schüssler Fiorenza.

A hermenêutica feminista está particularmente atenta ao funcionamento sexista da linguagem. Repare-se, por exemplo, no prurido auricular de expressões como: a arcebispa de Setúbal, a cardeal de Lisboa. Utilizando normalmente o genérico “homem” e “homens”, nos textos sagrados, nas celebrações  litúrgicas, na catequese, as mulheres são inevitavelmente invisibilizadas, esquecidas e marginalizadas. Impõe-se, portanto, estar atento.

Essa hermenêutica é particularmente crítica com as imagens patriarcais de Deus. De facto, se Deus é masculino, o homem-varão acaba por ser divinizado. Realmente, a maior parte das imagens usadas nas religiões e nas teologias para se referirem a Deus são expressão do domínio patriarcal e acabam por legitimar religiosamente o poder dos homens. Entre as mais comuns: Pai, Rei, Juiz, Senhor, Soberano, Criador do Céu e da Terra, Omnipotente. Por conseguinte, a crítica feminista deve desconstruir estas imagens,  porque estão associadas ao poder dos homens e geram atitudes de submissão e dependência, não fomentando uma relação interpessoal.

A teologia feminista mostra-se especialmente crítica com a imagem de Deus “Pai”, por tratar-se de uma imagem que leva “directamente à obediência e à submissão, de que a religião autoritária abusa”.  Quer recuperar imagens que têm a ver com a vida, a amizade, o amor, a clemência, a compaixão, a compreensão, a generosidade, a ternura, a confiança, o perdão, a solicitude... E o que é que pode impedir os crentes de se dirigirem a Deus como Mãe? Deus é Pai/Mãe.

Volver arriba