Divorciados e recasados diante dos sacramentos... (Pe. L. Correa sj)
Este assunto é muito importante devido ao grande número de pessoas separadas e divorciadas. Este número também é grande entre cristãos católicos, muitos dos quais têm formação e princípios cristãos, prática religiosa e um ardente desejo de participar dos sacramentos.
Sobre este tema há muitas publicações de teólogos, pastores, especialistas em Direito Canônico e, sobretudo, pronunciamentos do Papa e dos bispos. O assunto é controvertido e não pretendemos resolvê-lo, mas mostrar como se coloca a questão e dar elementos para o discernimento dos católicos envolvidos nessa situação.
Desde o princípio a Escritura afirma o valor da união conjugal e da família. No relato da criação da humanidade se lê que Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, o fez homem e mulher, e lhes disse:'crescei-vos e multiplicai-vos; enchei a terra...' (Gn 1,26-28). Da união do homem e da mulher se diz: 'serão os dois uma só carne' (Gn 2,24).
O matrimônio é santificado e a sua fecundidade é uma bênção divina. Ele se torna símbolo do amor de Deus pelo seu povo eleito, Israel. A relação de Deus com Israel é compreendida como uma aliança, e a sua representação é o matrimônio. Israel é a esposa de Javé (Is 62, 4-5). Por conseguinte, o culto aos deuses estrangeiros é infidelidade à aliança e adultério (Ez 16; Os 2).
Entretanto, o problema do divórcio surgiu. Se depois do casamento, a mulher não mais encontra 'graça aos olhos do marido', ele podia despedi-la de casa, fazendo uma ata de divórcio (Dt 24,1). Daí em diante, ele podia se casar novamente, e ela também. Somente o marido podia tomar a iniciativa. A sociedade era patriarcal.
Uma questão ficava pendente: o que é exatamente 'não encontrar graça aos olhos do marido'? Os rabinos se dividiam na interpretação da Torá (lei de Moisés). Esta discussão era bastante viva no tempo de Jesus. Alguns rabinos (escola de Shammai) restringiam a cláusula ao adultério somente. Outros (escola de Hillel) expandiam a cláusula aos motivos mais fúteis (se a mulher deixasse de ser bela, tivesse deixado queimar a comida, tivesse verrugas ou mau hálito...) O divórcio fragilizava muito a mulher, pois a sociedade era masculina, e ela dependia do homem. A mulher despedida pelo homem estava exposta à miséria, à mendicância e à prostituição. Tal era a situação das viúvas, que por não terem marido, tinham dificuldade de sobreviver, pois não havia pensão do Estado. Na pregação social dos profetas se defendia o órfão, o estrangeiro e a viúva, porque eram os grupos sociais mais fragilizados, mais expostos à miséria e à opressão.
Estes dados são importantes para entendermos o contexto que Jesus encontrou, o problema com o qual se deparou, e o alcance do seu ensinamento. A palavra de Jesus não é descontextualizada nem a-histórica. Ele não paira sobre a história, mas se insere nela e anuncia o Reino de Deus.
O Novo Testamento (NT) nos apresenta Jesus como plenitude da revelação divina e cumprimento das promessas feitas à Israel. Ele é o Messias, o Senhor, o caminho definitivo da salvação. Ele é o critério definitivo de compreensão da Torá (lei) e dos profetas. Ele é o Senhor da criação e o Senhor da história. Entretanto a sua manifestação se faz dentro da história e tem suas marcas.
A moral de Cristo está alicerçada no amor ao próximo, critério de toda a lei e da relação com Deus: 'nisto conhecerão que são meus discípulos que vos ameis uns aos outros' (Jo 13,35). Todos os mandamentos se resumem neste: amar ao próximo como a si mesmo. 'Quem ama o próximo cumpriu a lei' (Rm 13,8-10). Os outros mandamentos só tem valor se forem uma mediação deste amor. Se não, não tem valor para o cristão. A Lei foi feita para o homem e não o homem para a Lei (Mc 2,27-28). Ela não é um capricho divino para oprimir o homem, mas um caminho para salvá-lo e dignificá-lo.
O NT santifica o matrimônio, seguindo a linha do Antigo. O matrimônio é sinal do amor de Cristo pela Igreja (Ef 5), da união do Senhor e do novo Israel. A novidade de Jesus é a afirmação da indissolubilidade do matrimônio e uma proibição categórica do divórcio (Mt 19,1-12; Mc 10,1-12; Lc 16,18; Rm 7,2-3; 1Cor 7,10-11). A sua referência principal é justamente o relato da criação, onde se diz que o homem e a mulher se unem e se tornam "uma só carne". E o que Deus uniu, o homem não deve separar.
Os textos citados têm uma convergência que mostra um ensinamento inequívoco do Senhor e também a prática da Igreja primitiva, dos primeiros cristãos. Os textos do NT são memória de Jesus e ao mesmo tempo catequese da comunidade, que reflete a sua compreensão e a sua prática.
Sobre o divórcio, há duas exceções no NT: uma está no Evangelho de Mateus (5,32; 19,9) e outra em Paulo (1Cor 7,12-16). Em Mateus está dito: "todo aquele que repudiar a sua mulher, exceto por motivo de fornicação, e desposar uma outra, comete adultério". Isto revela a interpretação de Mateus e sua comunidade sobre o ensinamento de Jesus. O matrimônio é indissolúvel, sim. Ele realiza a vontade do Criador. No entanto, ele também é santo. E o adultério e o comportamento gravemente imoral quebram a santidade e a unidade do matrimônio. Marido e mulher estão unidos para sempre, mas somente no amor e na fidelidade. Quando uma parte escolhe o caminho da infidelidade, a outra pode e deve separar-se.
Na verdade, Mateus atenua o radicalismo de Jesus. Isto pode ser visto também em outra passagem, no Evangelho de Lucas, onde Jesus diz: 'Se alguém vem a mim, mas não odeia pai e mãe, mulher e filhos, irmãos e irmãs, e até a si mesmo, não pode ser meu discípulo' (14,26). O Evangelho de Mateus coloca da seguinte maneira a mesma afirmação: 'Quem ama o pai ou a mãe mais que a mim, não é digno de mim. Quem ama o filho ou a filha mais que a mim, não é digno de mim' (10,37). Em Mateus a exigência de Jesus está colocada de maneira mais razoável e menos chocante. Isto acontece também em relação ao divórcio: Mateus atenua o radicalismo de Jesus e torna mais razoável a sua exigencia (Cf. nota 'Matrimônio e divórcio na Igreja de Mateus' : in G. Barbaglio: Os Evangelhos, 1990, 295-298).
O NT é inspirado pelo Espírito Santo, portanto Mateus tem autoridade para isso. E em tudo isso, é possível ver a gênese da Igreja primitiva, que vai se apropriando do ensinamento de Jesus de modo criativo, adaptando-o às circunstâncias, re-interpretando a mensagem diante de uma nova situação, mantendo a fidelidade ao Espírito de Cristo e ao núcleo de sua mensagem. Cristo e o cristianismo não são fundamentalistas. A fidelidade a Deus não é seguir um código de leis imutáveis ao pé da letra, mas amar e seguir uma pessoa que nos mostra que a lei é feita para o homem, e que a misericórdia tem prioridade na conduta humana e na relação com Deus. A re-interpretação criativa da lei faz parte da mensagem de Cristo. A fidelidade intransigente e opressora não são o Espírito do Evangelho.
A outra exceção é a de Paulo (1Cor 7,12-16). Trata-se de casamentos mistos, em que um dos cônjuges é convertido, e o outro não; de modo que um é cristão, e o outro não. Se o cônjuge não-cristão consente em viver com o cônjuge cristão, este não deve repudiá-lo. Se o cônjuge não-cristão quer se separar, o cônjuge cristão pode aceitar, pois neste caso "não estão ligados". A razão é que 'foi para viver em paz que Deus nos chamou'. Critério de Paulo: Deus nos chamou para viver em paz. Este é um critério inspirador para pastoral matrimonial - possibilitar às pessoas viverem em paz. O NT foi determinante na prática da Igreja ao longo de sua história.
A Igreja sempre afirmou a indissolubilidade do matrimônio como mandamento do Senhor, expresso na Sagrada Escritura. Entretanto há uma distinção entre doutrina e aplicação prática, entre princípio e ação pastoral. A ação pastoral deve levar em conta não somente a norma, mas também as circunstâncias concretas de pessoas e comunidades.
As exceções à indissolubilidade também tiveram lugar na história da Igreja. Elas se encontram em alguns dos chamados Padres da Igreja (teólogos cristãos dos primeiros séculos), como Santo Ambrósio, São João Crisóstomo e São Gregório Nazianzeno.
No Séc.VIII, S. Bonifácio, bispo na Alemanha, consultou Roma sobre o caso de um homem casado que tinha uma mulher doente mental e estava constrangido a viver em continência sexual. A consulta foi se ele podia ter uma segunda mulher, se chegasse à conclusão de que era impossível viver em continência. A resposta de Roma, no pontificado de Gregório II, foi que sim, lembrando porém o dever do casado de amparar a mulher rejeitada.
No segundo milênio, a cristandade foi tomando caminhos diferentes no Oriente e no Ocidente. O Ocidente, marcado pela mentalidade latina, bastante jurídica, foi disciplinando o casamento no direito eclesiástico. No século XII, surgiu o rito do matrimônio tal como nós conhecemos. Anteriormente, as pessoas se casavam segundo o costume de suas respectivas tradições.
Ainda hoje há uma exceção ao rito do matrimônio: nos lugares onde não há sacerdote nem ministro do matrimônio, ou há pouca assistência, onde ele vá menos de uma vez por mês, duas pessoas podem se unir em matrimônio sem a sua presença, e esta união matrimônio é valida perante a Igreja como sacramento (Código de Direito Canônico, 1116). É uma mostra de que o sacramento do matrimônio não está no rito, mas na vida. O rito é uma celebração daquilo que se vive, não uma necessidade intrínseca do sacramento. O sacramento do matrimônio não é um fluído invisível que emana das mãos do sacerdote no instante da celebração do rito, mas é uma união de duas pessoas que se entregam uma a outra; e celebram esta união na fé e na presença da comunidade cristã, pedindo a bênção de Deus.
A cristandade oriental, ao contrário da mentalidade jurídica do ocidente, desenvolveu o princípio da economia. Consiste em que Deus é um bom administrador (ecônomo) e a Igreja deve exercer a misericórdia nos casos limites em que se esgotam todos os outros recursos. A Igreja deve ter a atitude do bom pastor. Aplicando-se este princípio à questão do divórcio, se aceitam exceções à indissolubilidade e se celebra um segundo matrimônio.
Pertencem à cristandade oriental as Igrejas Ortodoxas e a Igreja Católica de rito oriental. No século XVI, a Igreja Católica realizou o concílio de Trento. O seu principal objetivo era reagir à Reforma protestante, considerada heresia. Dentre as heresias da Reforma estava a contestação dos sacramentos e da autoridade da Igreja. Os protestantes aceitavam o divórcio em certas circunstâncias.
A reação católica foi de afirmar a autoridade da Igreja, afirmar o valor dos sacramentos e condenar as posições dos protestantes. O Concílio afirmou a indissolubilidade do matrimônio e quis condenar o divórcio. No entanto, alguns de seus membros lembraram que esta condenação não podia ir de encontro à pratica das Igrejas Orientais Católicas, que já tinham longa tradição de tolerância e sempre foram ligadas a Roma. O texto foi modificado e a sua forma final foi uma afirmação da doutrina da indissolubilidade, sem condenar a prática das Igrejas Orientais, que mantiveram o seu costume. Isto mostra que a doutrina da Igreja sempre foi de afirmação da indissolubilidade, mas também que a sua ação pastoral sempre teve bolsões de tolerância.
O magistério e o debate contemporâneo. O magistério é o ensinamento oficial da Igreja. O magistério é exercido pelo Papa e pelos bispos católicos. O Papa João Paulo ll escreveu uma carta pastoral sobre a família, em 1981, que se chama Familiaris consortio (Comunidade ou associação familiar). Aí são tratados também os problemas de separação e divórcio.
Há muitos pontos importantes que poucos católicos conhecem. Muitos acham que a separação, por si só, é um pecado que impede a participação nos sacramentos. Não é. O papa diz que 'motivos diversos, quais incompreensões recíprocas, incapacidade de abertura a relações interpessoais, etc..., podem conduzir dolorosamente o matrimônio válido a uma fratura muitas vezes irreparável. Obviamente que a separação deve ser considerada remédio extremo, depois que se tenham demonstrado vãs todas as tentativas razoáveis'. O papa reconhece portanto, que mesmo um matrimônio válido pode sofrer 'fraturas irreparáveis' que justifiquem a separação. A separação não é obstáculo a participação dos sacramentos (n.83). É muito importante que os fiéis católicos saibam disto, pois muitos casos de afastamento da Igreja se devem à pura ignorância. E há também clérigos que não conhecem o ensinamento da Igreja e contribuem para o afastamento dos fiéis.
Aos divorciados que contraem nova união, o papa dirige uma palavra de acolhida e conforto: 'exorto vivamente os pastores e a inteira comunidade dos fiéis a ajudar os divorciados, promovendo com caridade solícita que eles não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto batizados, participar na sua vida. Sejam exortados a ouvir a Palavra de Deus, a frequentar o Sacrifício da Missa, a perseverar na oração, a incrementar as obras de caridade e as iniciativas da comunidade em favor da justiça, a educar os filhos na fé cristã, a cultivar o espírito e a obras de penitência para assim implorarem, dia a dia, a graça de Deus. Reze por eles a Igreja, encoraje-os, mostre-se mãe misericordiosa e sustente-os na fé e na esperança' (n.84). Trata-se de uma grande abertura, de uma palavra bastante acolhedora que contrasta com o discurso moralista e condenatório que muitas vezes já presenciamos em ambientes católicos e nos púlpitos.
Quanto à participação nos sacramentos, ela não é permitida aos divorciados que contraem nova união nem aos seus cônjuges. O papa considera que este estado de vida contradiz a união de amor entre Cristo e a Igreja, significada na Eucaristia. Considera também que se admitissem estas pessoas à Eucaristia, os fiéis seriam induzidos em erro e confusão acerca da doutrina da Igreja sobre a indissolubilidade do matrimônio.
Este posicionamento do pontífice fez avançar bastante a posição da Igreja e sua prática pastoral, no entanto ainda restam problemas. Há muitas pessoas de fé profunda e de grande generosidade que sofrem muito por não poderem participar da Eucaristia. Algumas alternativas se apresentam.
O casamento na Igreja é regulado por uma legislação eclesiástica chamada Direito Canônico. O Código de Direito Canônico prevê casos em que um matrimônio pode ser declarado nulo. Tecnicamente não é uma anulação do casamento, mas sim uma declaração de nulidade, ou seja, juridicamente o matrimônio nunca existiu. Há uma série de razões que tornam nulo o casamento religioso. Elas podem ser agrupadas em três grupos: as falhas do consentimento, os impedimentos dirimentes e a falta da forma canônica na sua celebração. Muitas incompatibilidades radicais da vida em comum, que trazem separação, podem ser enquadradas nas causas de nulidade. Muitas imaturidades dos cônjuges também.
As causas de nulidade matrimonial são tantas que quase todas as separações conjugais estão ligadas a elas. É possível ver em quase todas as separações indícios de nulidade. Especialistas em direito canônico dizem que 80 a 95 por cento dos matrimônios são nulos. É um número impressionante, mas real. Mesmo que posteriormente muitos dêem certo, a sua consumação não se deu na época do casamento, mas muito depois.
Para iniciar o processo de nulidade matrimonial, um dos conjunges deve procurar o tribunal eclesiástico da sua diocese. O processo dura em média um ano. Ao obterem a declaração de nulidade, os ex-cônjuges podem se casar novamente na Igreja. Juridicamente são solteiros. Maiores informações sobre este assunto podem ser encontradas no livro de Jesus Hortal: Casamentos que nunca deveriam ter existido (São Paulo, Loyola, 1987). É um livro breve e elucidador. O título, entretanto, é questionável. Muitos problemas e incompatibilidades da vida conjugal só podem ser avaliados com o passar do tempo, e não a priori. Supor que tais casamentos ‘nunca deveriam ter existido’, nós parece um certo exagero, além de sugerir que os filhos (quando houver) ‘nunca deveriam ter nascido’.
A solução canônica não resolve todos os problemas no campo das separações. Se todos os casais separados procurassem o tribunal eclesiástico em busca da nulidade, não haveria como atender a todos os casos. Além do mais, há muitas separações dolorosas que já enfrentaram o processo civil. Submetê-las a um novo processo judiciário, a mais depoimentos e interrogatórios, pode causar mais sofrimentos a pessoas já bastante machucadas. Há feridas que ainda doem muito e não convém mexer novamente. São situações em que as circunstâncias pastorais desaconselham. Alguns processos podem demorar muitos anos e complicar a vida dos separados. Há ainda casos em que é impossível se provar a nulidade de um matrimônio. Diante disso, é necessário pensar em novas alternativas.
O Pe. B. Häring, redentorista alemão e renomado teólogo moral, abordou o problema. Ele foi um dos grandes renovadores da moral católica. Nos anos 50 escreveu A Lei de Cristo, considerada um divisor de águas. Anos depois, colaborou no concílio Vaticano II. No final de sua vida, já enfermo, resolveu escrever um opúsculo sobre a questão dos divorciados e os sacramentos, com a intenção de lhes dirigir uma palavra de simpatia e de encorajamento. O livro se chama: Existe saída? Para uma pastoral dos divorciados (São Paulo, Loyola, 1990). Ele escreve como 'uma preparação imediata para a morte, com firme confiança na promessa do senhor: 'Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia' (Mt 5,7)'.
Um dos pontos importantes é a indissolubilidade do matrimônio entendida como ‘preceito’. Häring afirma que há dois tipos de preceito: o preceito-meta e o preceito-limite. O preceito-meta é um ideal, e o preceito-limite é a lei. O casamento indissolúvel é Evangelho (Boa-Nova), está no nível da graça, é dom de Deus. É um preceito-meta, um ideal que nem todos são capazes de alcançar; e não se pode realizá-lo por força de lei, seja civil ou canônica.
Diante de separações em que é muito difícil e complexo se obter a nulidade, Häring recomenda que, em caso de nova união, os fiéis podem receber os sacramentos, desde que não haja escândalo na comunidade eclesial. O novo casal deve expor a sua situação a um sacerdote experimentado nestas questões, que possa recomendar a sua admissão aos sacramentos.
O magistério da Igreja é também o ensinamento dos bispos, que deve levar em conta as circunstâncias das Igrejas locais, como a diversidade de mentalidades e de condicionamentos culturais. Recentemente os bispos alemães do Reno Superior publicaram uma carta pastoral sobre os divorciados recasados (julho de 1993. Tradução: Sedoc 242 (1994), 423-438). Afirmam que se pode conceder a eles a comunhão, desde que observadas certas condições, como a boa consciência da pessoa e a certeza de que não se causará escândalo na comunidade eclesial. Basicamente assumem a mesma posição de Häring. Um dos signatários da carta é dom Karl Lehmann, presidente da Conferência dos Bispos da Alemanha.
Há um número significativo de bispos, párocos e comunidades eclesiais em todo o mundo que adotam esta mesma posição. Ao que tudo indica, em muitas comunidades e ambientes eclesiais, a comunhão de divorciados recasados não causa escândalo; pelo contrário, é vista até com simpatia por muitos fiéis.
É tarefa da Igreja local buscar a inculturação da fé, isto é, expressá-la numa cultura diferente. Isto exige um trabalho de re-interpretação do conteúdo da fé e suas incidências morais, levando em conta um novo ambiente cultural. Esta inculturação conduz a novas formas de expressão, que fazem sentido para aqueles que participam do contexto cultural. Este é um dos grandes temas da pregação do Papa João Paulo II - a necessidade de inculturação. Não é abandono da fé, mas uma adaptação que é fiel ao essencial no Evangelho.
Nós vivemos numa nova cultura, que muitos chamam ‘pós-moderna’. Ela se diferencia bastante do passado recente, de duas gerações anteriores. Tais mudanças culturais também exigem o trabalho de inculturação da fé, que passa pela moral sexual e matrimonial. Este trabalho implica reconstrução e a preservação da família num mundo que mudou, que não volta mais a ser o que era. Os cristãos podem desempenhar aí um papel fundamental, com discernimento e sensibilidade para os sinais dos tempos.
K. Rahner, um dos grandes teólogos do século XX, nos dá uma importante contribuição neste debate, trabalhando o conceito de cristão adulto. O que significa ser cristão adulto? A maioridade é a auto-determinação da pessoa. Existe uma maioridade civil, profissional, afetiva, familiar, política, etc... A pessoa adulta muitas vezes deve tomar decisões em situações complexas, onde as normas gerais da sociedade e das instituições não decidem por ela e nem prevêem de maneira adequada todas as circunstância. As normas podem servir como referência, mas não substituem o juízo e a decisão pessoal. Na vida cristã, o fiel também encontra situações em que deve tomar decisões sérias, em que outros não podem decidir por ele, nem mesmo a Igreja. Aí o fiel deve ser adulto também como cristão, colocando-se diante de Deus e de sua consciência, escolhendo o que for melhor e assumindo as consequências.
Para Rahner, se alguém sabe, diante de Deus e de sua própria consciência examinada com honradez, que seu matrimônio é inválido também segundo a doutrina geral da Igreja, mas não pode demostrá-lo diante do foro eclesiástico e não obtem a autorização para contrair um novo matrimônio, então deve casar-se somente no civil e está justificado também diante de Deus (K. Rahner: El cristiano mayor de edad, in: Razón y Fe/1982). Ser adulto às vezes é se encontrar só, sem o respaldo dos outros. Ser cristão adulto é se expor à essa solidão, sem o respaldo eclesial desejado, mas é olhar para Deus e para o mundo com responsabilidade.
Nesta comunicação, não pretendemos resolver o problema dos divorciados na Igreja, nem tomar partido nas diversas posições e nem dizer a última palavra sobre a questão. O que desejamos é ajudar a esclarecer a consciência dos fiéis e mostrar como o problema se coloca na Igreja. Dando elementos para a reflexão dos fiéis, podemos favorecer a ação do Espírito de Deus, que sopra onde quer, conduzindo o povo santo e pecador dos caminhos tortuosos da história rumo à casa do Pai.
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