"Silêncio de deus" Anselmo Borges: "Eduardo Lourenço e Deus"
"Multifacetado pensador, encontrei-o várias vezes e gostaria de deixar aqui breves reflexões sobre o tema em epígrafe, a partir de alguns desses encontros, sempre iluminantes para mim"
"Participámos no Encontro de Lisboa, organizado pelo GOL, subordinado ao tema “Religiões, Violência e Razão” falou da estranha crise contemporânea"
"Enquanto o Ocidente se desertifica de Deus, noutras culturas, se dá a pretensão de apoderar-se de Deus, temos fanatismo"
"E continuou, dizendo que, quando se dogmatiza, é para dominar. A perspectiva cristã caminha sobre outro chão. Aqui, Deus aparece como não violência, como puro amor, como espaço de liberdade absoluta"
"Do silêncio de Deus que nós mesmos criámos não virá nenhum socorro"
"Enquanto o Ocidente se desertifica de Deus, noutras culturas, se dá a pretensão de apoderar-se de Deus, temos fanatismo"
"E continuou, dizendo que, quando se dogmatiza, é para dominar. A perspectiva cristã caminha sobre outro chão. Aqui, Deus aparece como não violência, como puro amor, como espaço de liberdade absoluta"
"Do silêncio de Deus que nós mesmos criámos não virá nenhum socorro"
"Do silêncio de Deus que nós mesmos criámos não virá nenhum socorro"
Sobre o filósofo, o ensaísta, o pensador — um dos mais lúcidos do nosso tempo —, o crítico da arte, das múltiplas artes, nomeadamente da literatura e da música..., outros já falaram e escreveram.
Encontrei-o várias vezes e gostaria de deixar aqui breves reflexões sobre o tema em epígrafe, a partir de alguns desses encontros, sempre iluminantes para mim.
Participámos no Encontro de Lisboa, organizado pelo GOL — era então Grão-Mestre António Reis —, subordinado ao tema “Religiões, Violência e Razão”. E diz-me Eduardo Lourenço mais ou menos assim: Ainda bem que também cá está, porque se o meu avô me visse aqui...
A abrir o Encontro, falou da estranha crise contemporânea. Enquanto o Ocidente se desertifica de Deus, noutras culturas não só não há morte de Deus como, em vez da laicização, continuam na sua Idade Média, acreditando que o seu Deus é o verdadeiro e o Ocidente está em vias de perdição. De facto, o Ocidente teve um dinamismo incomparável, e a razão disso é que o seu debate foi sempre à volta de Deus. Noutras culturas, Deus é um dado e está no centro de tudo; no Ocidente, Deus tem sido uma interpelação infinita. Deus não é uma evidência, porque não é um objecto. Deus é o nome, precisamente enquanto anti-nome, da nossa incapacidade de captar o Absoluto, o modo de designarmos a nossa incapacidade de ocuparmos o seu lugar. O Ocidente é a procura e o debate à volta desta questão. É-se contra a objectivação de Deus, porque Deus-pessoa não é objectivável. Deste modo, o Ocidente afirma-se como procura da liberdade. Quando, noutras culturas, se dá a pretensão de apoderar-se de Deus, temos fanatismo.
E continuou, dizendo que, quando se dogmatiza, é para dominar. A perspectiva cristã caminha sobre outro chão. Aqui, Deus aparece como não violência, como puro amor, como espaço de liberdade absoluta. Sem Ele, as nossas liberdades não têm lugar. Ao revelar-se como amor, Deus mostra que, se a violência é o estado natural, a não violência é que é o mistério, e o que liberta é o não poder.
De outra vez, vínhamos de um debate, já tarde na noite, do Casino da Figueira para o hotel. E eu disse-lhe que o tinha citado num artigo, pois dissera ao EXPRESSO que lhe “pode acontecer rezar”. E ele: “Admira-se? Todas as pessoas rezam”.
Em 2016, estivemos de novo no Casino da Figueira, para um debate sobre “Utopia e distopias”. Nele, reflectiu sobre a herança europeia, atravessando a Grécia, a cristianização, o humanismo..., e desembocando nos nossos dias, com esta afirmação: a Europa “nunca esteve tão confrontada com um desafio tão novo”, e “o centro da crise está em França, que está a discutir se tem ou não identidade, e isso é de ficar aterrado”. Daí passou para o medo que a Europa enfrenta em relação ao mundo islâmico, considerando que “o maior aliado do islão é a Arábia Saudita, país que alimenta o cruzadismo que vem desse lado. Mas o mundo tornou-se tão pequeno que nada se pode pôr à margem”.
E ficou-me este aviso: A força e o poder de Vladimir Putin vêm-lhe de ele considerar “a Santa Rússia” como a última barreira contra a islamização da Europa.
Devo uma palavra de especial gratidão a Eduardo Lourenço pelo prefácio luminoso, logo no título: “Suicidário Ocidente”, seguido do dito célebre de Fernando Pessoa “Não haver Deus é um Deus também”, com que honrou o meu livro “Deus Ainda Tem Futuro?” (2014). Ficam aí alguns parágrafos.
“Enquanto Ocidente, o nosso mundo conhece uma desertificação religiosa sem precedentes e, na aparência, irremediável. Tal é o diagnóstico de Marcel Gauchet, um dos seus paradoxais exegetas inconformado com essa nova versão da tão glosada “morte de Deus”, vivência radical da ausência de sentido para a Vida em si mesma e nós nela. Distingue-se esta nova situação do canónico “ateísmo” que sob a figura da negação de Deus era ao mesmo tempo uma figura da certeza, a mais radical de todas.
... o conteúdo único daquilo que ainda chamamos “história humana” não explicita uma luta análoga a uma fábula à Saramago, um desafio mítico entre o Homem e Deus, mas uma luta sem fim do Homem consigo mesmo como o Outro, com a inconsciente esperança de que o vencedor dela seja enfim o Deus criador e todo-poderoso que nos forneceu o modelo da vontade de poderio que é a essência demoníaca da Humanidade.
Questão atrevida e que na verdade soa a blasfémia (ou soaria, se a formulássemos em terras do islão) esta, que sabemos grave e urgente como nenhuma outra para ocidentais em vésperas de descerem a novas catacumbas: Deus ainda tem futuro? Quando aquela, menos vertiginosa mas não menos apocalíptica, seria: O Homem, a Humanidade, ainda tem futuro?
... Não tardará muito que entremos no tempo da hipercomunicação com o mundo à volta convertido numa espécie de deserto ignorado dos antigos. Foi desta autodesertificação que a dúvida apenas formulável acerca de Deus pôde nascer. Não esperemos que o Deus imaginado por nós como sem futuro venha, como o Cristo de um célebre conto de Eça de Queirós, confirmar-nos que ainda está entre nós. Do silêncio de Deus que nós mesmos criámos não virá nenhum socorro. É diante dele como Ausência suposta e Presença agostinianamente mais interior a nós do que nós que somos convocados para fazer prova de vida. E de vida eterna. A única que nos ajuda a suportar todas as ausências dos que nesta vida nos foram, à maneira de Dante, reflexos de uma Luz mais clara do que a do sol e das estrelas.”
O Deus de Eduardo Lourenço era o Deus de Jesus e dos místicos.