"Na Igreja, segundo Jesus, há ou deveria haver uma igualdade radical" Creio na Igreja?
"Como explica no seu Credo o famoso teólogo Hans Küng, “a Igreja é a ‘assembleia’, a ‘comunidade’ dos que crêem que Jesus é o Cristo, dos que fizeram sua a causa de Jesus e dela dão testemunho como esperança para todos”
"Ora, Jesus queria a Igreja enquanto Povo de Deus, não uma Igreja instituição de poder e clerical, com duas classes: de um lado, a hierarquia, o clero, que ensina e que manda em nome de Deus, e, do outro, os leigos, os que obedecem"
"Portanto, o que se passou e passa é que a hierarquia, padres e bispos, sacralizaram-se, atribuindo-se a si mesmos privilégios sacros ao serviço dos quais estaria o próprio celibato"
"Portanto, o que se passou e passa é que a hierarquia, padres e bispos, sacralizaram-se, atribuindo-se a si mesmos privilégios sacros ao serviço dos quais estaria o próprio celibato"
| Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia
Quando se recita o “Credo” (nele, encontra-se o núcleo da fé cristã), é necessário estar prevenido contra perigos mortais.
Por exemplo, diz-se: “Creio em Deus Pai, em Jesus Cristo, no Espírito Santo”. Em português, também se diz “Creio na Igreja”, como se esta estivesse ao mesmo nível de Deus. Na realidade, não pode ser nem é assim. Aliás, o latim faz a distinção essencial, pois diz: “Credo in Deum...”; porém, não diz “Credo in Ecclesiam”, mas “Credo Ecclesiam”. A diferença essencial está naquele “in”: Creio “em” Deus, que significa: entrego-me confiadamente a Deus, mas não creio “na” Igreja. A diferença aparece também noutras línguas: por exemplo, em francês, distingue-se entre “Je crois en Dieu” e “Je crois à l´Eglise”, em alemão: “Ich glaube an Gott” e “Ich glaube die Kirche”.
Voltando à diferença na formulação latina — “Credo in Deum...”, mas “Credo Ecclesiam” —, o que lá está não é “Creio na Igreja”, mas: em Igreja, como Igreja, isto é, como membro da Igreja enquanto comunidade de todos os baptizados, creio em Deus Pai, em Jesus Cristo, no Espírito Santo, e espero a ressurreição dos mortos e a vida eterna... Como explica no seu Credo o famoso teólogo Hans Küng, “a Igreja é a ‘assembleia’, a ‘comunidade’ dos que crêem que Jesus é o Cristo, dos que fizeram sua a causa de Jesus e dela dão testemunho como esperança para todos”.
Como habitualmente se coloca tudo no mesmo plano, dizendo “creio na Igreja”, é fácil interiorizar a ideia de que se acredita na Igreja enquanto instituição, e instituição divina, com todas os enganos e desastres que se sucedem. Aliás, quando, na linguagem comum, a Igreja é publicamente referida, dizendo, por exemplo, “a Igreja diz sobre este tema isto e aquilo...”, pensa-se não na Igreja Povo de Deus, mas na hierarquia, no Papa, no Vaticano, nos cardeais, nos bispos, nos padres...
Ora, Jesus queria a Igreja enquanto Povo de Deus, não uma Igreja instituição de poder e clerical, com duas classes: de um lado, a hierarquia, o clero, que ensina e que manda em nome de Deus, e, do outro, os leigos, os que obedecem. Veja-se o significado da palavra leigo no linguajar comum: sou um “leigo”, com o sentido de incompetente, um ignorante. Ou a expressão referida aos padres, quando lhes é retirado o ministério: “foi reduzido ao estado laical”, com o sentido implícito de ter perdido o privilégio de clérigo.
Na Igreja, segundo Jesus, há ou deveria haver uma igualdade radical e, consequentemente, nela deve reinar a fraternidade, a igualdade e a liberdade. Evidentemente, uma vez que há muitos, terá de haver alguma organização, mas a instituição tem de estar ao serviço da Igreja Povo de Deus, e não hipostasiar-se, sacralizar-se, dando a si mesma atributos divinos. Aliás, Jesus disse: “Eu vim não para ser servido mas para servir”. Na Igreja, há serviços, funções, ministérios.
Questão essencial é sempre o clericalismo, como tantas vezes o Papa Francisco tem sublinhado. Repito: clericalismo vem de clero, que implica a ordenação sacerdotal e com ela o poder sacro e o sacerdote como outro Cristo. Jesus tinha dito: “sois todos irmãos”, mas, com a ordenação sacerdotal apareceu, repito, uma Igreja com essas duas classes: clero e leigos. Segundo o Novo Testamento, sacerdote só Jesus e o povo cristão, que é sacerdotal. Assim, dois eminentes teólogos actuais, jesuítas como Francisco, exigem como urgente a necessidade da dessacerdotalização dos ministérios. Jorge Costadoat escreveu: “A versão sacerdotal do cristianismo converteu-se numa expressão patológica do mesmo.” González Faus pede que “desapareça toda a conotação ‘sacerdotal’ no ministério... A rica teologia dos Evangelhos sobre o pastor, o padre (pai), pode dar perspectivas muito mais cristãs do ministério do que essa espécie de ‘divinização’ que o termo sacerdote sugere.”
Portanto, o que se passou e passa é que a hierarquia, padres e bispos, sacralizaram-se, atribuindo-se a si mesmos privilégios sacros ao serviço dos quais estaria o próprio celibato. Eles trazem Cristo à Terra na Eucaristia, só eles perdoam os pecados, e formam uma espécie de casta à parte, como diz a própria palavra clero, são ministros, mas ministros sagrados... O padre foi considerado “alter Christus” (outro Cristo). Isso foi de tal modo interiorizado pelo comum dos católicos que há constantemente o perigo da deriva para o clericalismo, como diz o padre Stéphane Joulain, psicoterapeuta: “Considerar que, porque se foi ordenado, se tem direito a uma forma de reverência é um erro, de que alguns não hesitam em abusar... A cultura de um país, a sua história desempenham um papel nisso: nos Estado Unidos, mas também na África, os leigos encontram-se numa grande submissão aos padres. Alguns fiéis, citados no relatório judicial da Pensilvânia, contam que, quando um padre os visitava, era como se o próprio Deus entrasse em casa...”.
Mais: neste contexto, também se entende que o perigo máximo consista em defender e proteger a instituição, mesmo à custa daqueles que verdadeiramente deveriam ser defendidos e protegidos: as crianças e os mais frágeis, no caso dos abusos. O encobrimento para defender a Igreja-instituição no seu poder e prestígio! E foi a tragédia que se conhece.
Perante uma das piores crises da História da Igreja, importa refundá-la, indo ao encontro do Evangelho. É nisso que trabalha afincadamente o Papa Francisco, que não se cansa de repetir que “a Igreja somos nós todos”.
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