As loucas da Plaza de Mayo e sua razão

A primeira vez em que as vi mencionadas foi em livro de Rosiska Darcy de Oliveira. E a partir daí não mais deixei de seguir sua pista, revisitar suas raízes, acompanhar sua loucura. As mães “loucas” da Plaza de Mayo em Buenos Aires, Argentina me haviam conquistado para sempre.

As Mães da Plaza de Mayo são uma notável organização de mulheres argentinas que são ativistas de direitos humanos. Estão ativas há mais de quatro décadas e seu trabalho excepcional tem sido sustentado por duas convicções entrelaçadas: uma é que elas nascem novamente a partir de seus filhos; outra é que se tornaram mães de todas as vítimas da opressão na Argentina contemporânea.

As Mães da Plaza de Mayo abraçaram essas convicções como resultado direto das vidas que viveram seus filhos e as horríveis mortes que muitos deles sofreram. Os filhos das Mães da Plaza de Mayo foram sequestrados e quase todos assassinados pelos militares argentinos durante a “guerra suja” contra os movimentos políticos de esquerda de 1976 a 1983. O atual governo da Argentina reconhece que aproximadamente 9000 dos esquerdistas e líderes trabalhistas que morreram nas mãos dos militares durante a guerra suja estão desaparecidos. As Mães da Plaza de Mayo e outros ativistas de direitos humanos acreditam que o número de mortos que permanecem desaparecidos aproxima-se dos 30.000. Ninguém realmente sabe por que estas vítimas da guerra suja “desapareceram” sem deixar rastro.

Estes desaparecimentos e mortes não documentadas de milhares aconteceram por uma específica razão. Era uma parte integrante do esforço de esmagar a esquerda argentina e facilitar a implementação do mesmo tipo de política neoliberal coordenada pelo regime de Pinochet no Chile, pela ditadura brasileira, assim como por numerosos outros regimes de opressão através da América Latina. Estes desaparecimentos aconteceram de mãos dadas com as políticas do governo argentino que cortou os salários drasticamente, declarou fora da lei contratos sindicais existentes e vigentes, demitiu milhares de ativistas sindicais de seus empregos e promoveu a privatização de boa parte da economia.

As mães da Plaza de Mayo se tornaram agudamente conscientes destas circunstancias na medida em que puseram em marcha a campanha para exigir que o governo argentino desse conta do paradeiro de seus filhos desaparecidos. Na medida em que sua consciência política crescia, tornaram-se inimigas implacáveis tanto da agenda neoliberal que está por trás da guerra suja como daqueles que têm a responsabilidade por sua continuada implementação. Além disso, no processo de oposição a esta agenda, as mães da Plaza de Mayo começaram a se ver a si próprias como herdeiras dos ideais de seus filhos e responsáveis por levar adiante sua obra.

As mães da Plaza de Mayo não têm ilusões. Sabem que a maioria de seus filhos sequestrados foram torturados e assassinados pelos militares durante a guerra suja. No entanto, elas permanecem firmes recusando as ofertas do governo de reparação ou indenização pelas mortes de seus filhos. Elas insistem em que não aceitarão formalmente que nenhum de seus filhos está morto até que o governo apresente documentação para mostrar o que aconteceu a eles. Esta posição oferece a única esperança de que a justiça seja feita pelo que aconteceu durante a Guerra suja.

Elas eram apenas um grupo de mulheres, mães e avós, que, em Buenos Aires, durante os sangrentos anos da ditadura militar, defenderam a causa de seus filhos perdidos, que haviam “desaparecido” no abismo da tortura e da morte. Reivindicando algo que pertence essencialmente à esfera do privado, e brandindo diante da face do ditador nada menos e nada mais do que o direito violado a sua maternidade, elas criaram uma força política com repercussões maiores. Foi, talvez, o mais eloquente e o melhor entendido clamor contra aqueles terríveis, obscuros anos em seu país e continente. Movidas por razões que eram aparentemente estritamente “privadas”, elas emergiram politicamente com novas metas e desafios, dando nascimento à redenção para todo o seu povo, nascida da dor inconsolável de perder seus filhos.

As loucas têm sua “razão”. E esta não é tão fora de propósito, uma vez que o próprio Papa Francisco, argentino, a reconhece. Na data em que se celebra o Dia das Mães na Argentina, um grupo delas foi a Roma. Seu intento primeiro era realizar uma manifestação na Praça de São Pedro em comemoração do Dia das Mães e dos 40 anos do movimento. Seu desejo era realizar uma marcha, mas isso não foi possível porque naquele dia havia uma canonização acontecendo naquele mesmo lugar. A segurança não permitiria que as mães realizassem sua marcha.

Mas Francisco não se esqueceu delas. Mandou outro sacerdote busca-las e colocou-as na primeira fila, cumprimentando uma por uma. Assim, mesmo sabendo as posições controvertidas que existem em relação às “loucas” na Argentina, o Papa reconheceu e apoiou a “razão” dessas mulheres, que sofrem até hoje pela ausência nunca preenchida de seus filhos.

O olhar de pastor do Papa reconheceu que estes corpos femininos, consagrados pelo milagre da vida, tornaram público o vazio e a ausência deixada por seus filhos desaparecidos, e então tornaram-se instrumentos de redenção para muitos, para todos os que sofreram sob aquela cruel opressão.
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