Em boa companhia
Tenho passado esses primeiros dias do ano em companhia de algumas mulheres brasileiras extraordinárias. Fico feliz quando vejo outras mulheres brilhando e fazendo diferença no mundo: além de carregar e cuidar da humanidade desde o ventre até os momentos finais da velhice e da morte, criam novos espaços e aberturas por onde a humanidade se vê maior e mais digna.
Aracy de Carvalho Guimarães Rosa é uma delas. Já havia lido sobre ela e assisti à série da Globoplay, “Passaporte para a liberdade”. Que mulher extraordinária, em sua coragem, doçura, feminilidade e compaixão. Seu coração batia ao compasso da dor alheia, e assim assumiu a paixão de todo um povo.
Casada com um dos maiores escritores brasileiros, é a figura dela que aparece e se agiganta durante a Segunda Guerra. João Guimarães Rosa homenageou sua bem-amada dedicando-lhe o maravilhoso livro “Grande Sertão Veredas”, e viveu a seu lado até morrer.
A brasileira que figura no Yad Vashem como Justa das Nações enche o Brasil de orgulho e aviva a memória e a consciência diante do genocídio nazista para que nunca mais se repita. Armada apenas de sua coragem e empatia, Aracy salvou muitas vidas naquele contexto de morte. E em meio a esse trabalho cotidiano e heroico ainda encontrou tempo para o grande amor de sua vida, unida a ele em companheirismo, carinho e parceria. Heroína e mulher apaixonada, Aracy de Carvalho é uma dessas sínteses raras e brilhantes que apenas as mulheres sabem construir.
Nara Leão, com sua voz de sussurro doce e personalidade brilhante e talentosa, é outra de minhas recentes companheiras. Eu a ouvi muito, seguindo seus passos e seu canto livre nos anos de minha juventude. Primeiro, as canções que cantava me embalavam, depois me faziam estremecer e sentir desejo de lutar, e finalmente me acompanhavam em momentos mais maduros da vida.
Porém, a excelente série documental exibida igualmente pela Globoplay revela uma Nara da qual eu não media toda a estatura e brilho. Mulher livre, independente, seguia a vocação que sabia ser a sua, em meio a um universo composto quase que totalmente de homens. Passou com soberana e sobranceira liberdade em meio a este ambiente machista fazendo amigos, despertando admiração, e acrescentando novidade bonita e enriquecedora ao movimento musical que nascia e marcaria para sempre a história da música não apenas brasileira, mas de todo o mundo.
A liberdade e o talento de Nara, com seu jeito doce e sua voz jamais estridente ou agressiva, marcaram presença e enfrentaram a cruel ditadura militar dos anos de chumbo. Toda tentativa de calar sua voz mansa e deliciosa fracassou e ela continuou, livre e entusiasmada como sempre, fecundando o chão por onde passava e construindo beleza e arte.
A amizade com personalidades brilhantes do mundo da música, como Roberto Menescal e Chico Buarque, o casamento e parceria com Cacá Diegues que se tornou amizade, maternidade e paternidade, a relação amorosa com os dois filhos, tudo isso fez da vida de Nara um caminho salpicado de brilho e luz, que ela repartiu com seus ouvintes e fãs, que se multiplicaram. Seu legado perdura até hoje, com a marca imortal daqueles que realmente possuem talento e são mordidos pelo fogo sagrado da inspiração.
A vida de Nara Leão foi breve, mais curta do que seria desejável. Partiu aos 47 anos. Justamente por isso seu legado impressiona ainda mais. Parafraseando Camões, como pode ser para tão grande amor tão curta vida? Como pode aquela menina de franjinha, cabelo Chanel e voz suave ser tão gigantesca e construir tanto nos anos que lhe foi tocado viver?
Aracy viveu centenária, faleceu aos 103 anos. Sobreviveu a seu amado, morto aos 59 anos, dias após ser empossado na Academia Brasileira de Letras.
Se é verdade que cada vez que se salva um ser humano, salva-se toda a humanidade, sua vida ainda é mais longa, mais prolífera, continuada em tantos que não teriam a chance de viver sem sua corajosa intervenção, arriscando-se em um dos sistemas mais cruéis que o mundo já conheceu.
A paixão pela justiça e a compaixão ativa de Aracy certamente inspiraram a frase que João Guimarães Rosa escreveu em seu romance maior, “Grande Sertão Veredas: “O que a vida quer da gente é coragem”. O genial escritor viu e viveu essa coragem encarnada em sua bela, educada e poliglota mulher.
A maneira feminina e plena de Nara estar no mundo, cantando livremente e sem abrir mão de viver aquilo para o que se sentia feita, certamente abriu caminho para que outras mulheres a seguissem e pisassem em suas pegadas. Se Rosa tem razão, coragem Nara teve de sobra em sua tão fecunda vida, ao espalhar arte e beleza por onde passava e despertar os ouvidos de todos com sua voz tão particular e característica.
Obrigada, irmãs, amigas, companheiras. Vocês são a melhor companhia que eu poderia ter neste começo de ano. Amigas da vida, apaixonadas pela justiça, abertas à comunhão que é feita de beleza e encantamento, mas também de luta, dureza, risco e coragem.