Esse troço de matar

Matar, assassinar, pôr fim a vidas alheias com motivos políticos, religiosos,
ideológicos é algo que a humanidade tem perpetrado frequente e abundantemente ao
longo de sua história milenar. As motivações para isso são várias: assalto, autodefesa,
paixão não correspondida, ciúmes. Porém, existe uma motivação que se destaca de
todas as outras por sua extensão e crueldade: eliminar, exterminar.


Quem mata elimina o outro da existência e de tudo que a constitui: convívio,
troca, relação, participação, liberdade.
E com essa eliminação, persegue um objetivo
mais radical: exterminá-lo, aniquilá-lo. Quando essa eliminação e consequente
extermínio tomou, ao longo da história, proporções volumosas e se revelou não como
um assassinato pontual com motivações individuais, mas como um projeto coletivo e
orquestrado com um fim mais abrangente, foi chamada genocídio.

Muitos genocídios aconteceram na história da humanidade. O que nos é mais
próximo foi certamente o holocausto, o extermínio de judeus na segunda guerra
mundial, que em sua fase mais aguda chamou-se “solução final”. Tratava-se de
limpar a Europa e posteriormente o mundo de todos os judeus. Ao lado destes
entravam na lista exterminatória ciganos, homossexuais, comunistas, enfim, todos
aqueles que apareciam como incômoda diferença dentro do projeto ariano e nazista
que perseguia um mundo formado apenas pela “raça pura”.

Eliminar quem é diferente, quem pensa diferente, quem crê diferente e assim
obstaculiza os projetos de determinado grupo é algo que aconteceu e acontece desde
que o mundo é mundo. Quando essa eliminação toma proporções coletivas e
aumentadas, é considerada crime contra humanidade e, como tal, não prescreve,
devendo ser sua memória para sempre execrada e banida da história humana.


O país foi surpreendido recentemente pelas revelações de um documento da
CIA tornado público
pelo pesquisador de Relações Internacionais da Fundação Getúlio
Vargas Matias Spektor. Nele, o personagem destacado é o general Ernesto Geisel,
considerado pelos que acompanham a recente história brasileira, como o homem que
iniciou o processo de abertura para a redemocratização do Brasil.
A figura de homem
honrado, de princípios, que começou a distender os chamados anos de chumbo,
emerge do documento secreto como alguém que, ao contrário, apoiava e respaldava
as execuções dos guerrilheiros e ativistas de esquerda como algo necessário para o
bem do país. Ressaltava, no entanto, que apenas os “subversivos perigosos” deveriam
ser executados e que a aprovação prévia do general João Figueiredo – sucessor de
Geisel – seria necessária.

O documento comprova, sem deixar lugar a dúvidas, o que já havia aparecido
nos registros de diálogos que constam do livro do jornalista Elio Gaspari no terceiro
volume da coleção “Ditadura”. Ali é registrada conversa do então presidente Geisel
com o então chefe do Centro de Informações do Exército, Vicente Dale Coutinho, onde
é avaliado que o crescimento econômico que o país então experimentava só se deu
quando se começou a matar. Comenta Geisel que “...esse troço de matar é uma
barbaridade, mas eu acho que tem que ser.”


Aos 104 executados da lista apresentada por Coutinho, Geisel, com uma frase
banal, acabava de abrir uma possibilidade de crescimento exponencial.
Os
assassinatos continuaram a acontecer, agora com a bênção presidencial. A mesma
política teve continuidade quando o general Figueiredo subiu ao poder.

É impressionante perceber os pontos de contato que têm essas declarações
do ex-presidente Geisel com outras do ex-presidente argentino Jorge Rafael Videla
,
entrevistado na prisão pouco antes de sua morte, em 2013. A entrevista feita pelo
jornalista Ceferino Reato chocou o continente e o mundo quando o ex-ditador
argentino confessa ter usado uma metodologia sistemática de “desaparecimento “ de
vários milhares de militantes de esquerda (30 mil, segundo informações de
associações de direitos humanos no país).

Tal como Geisel, o general Videla explica que era necessário matar esses
subversivos para organizar a sociedade argentina e fazê-la caminhar rumo ao modelo
do liberalismo econômico.
Mas como não era conveniente que a sociedade se desse
conta do massacre genocida, escolheram métodos discretos, quais sejam: os voos da
morte, quando os corpos das vítimas eram atirados no Rio da Prata para não serem
encontrados; a não existência de listas de nomes que pudessem posteriormente ser
encontrados. Em suma: apagar qualquer rastro dos crimes.

A esse projeto genocida o general Videla – um católico de missa diária –
chama de “Disposição Final”.
Impossível ignorar a analogia com a terminologia
nazista “solução final” dos últimos anos da guerra, quando milhões de judeus
passavam pelas câmaras de gás e os fornos crematórios.

Pelo visto, “... esse troço de matar”, segundo o General Geisel, é um vírus do
qual a humanidade não está livre.
Continua ferindo de morte o ethos humano e
carcomendo como verme imundo as entranhas da identidade dos povos que lutam por
liberdade. Não data apenas de seis décadas, mas foi reproduzido há três. E continua
vivo e solto hoje, se voltarmos as costas ao que a memória, com seu poder subversivo
e libertador, insiste em desvelar sobre nosso passado recente.
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