Vida perigosa

Já bem dizia o grande escritor João Guimarães Rosa pela boca do
jagunço Riobaldo, no grande romance Grande Sertão Veredas, que viver é
muito perigoso.
Referia-se, porém, aos perigos existenciais, que cercam o
cotidiano humano, obrigado a lidar com surpresas, riscos, atropelos e
obstáculos. Não falava diretamente da verdadeira roleta russa que passou
a significar a existência humana nas cidades brasileiras.

Falo das cidades sem esquecer nem menosprezar o campo. Ali
também o risco campeia e surpreende na emboscada, na atalaia, na bala
que atinge aquele ou aquela que menos espera, como foi o caso da
missionária Dorothy Stang, morta em 2005, ao dirigir-se a uma reunião de
oração com a Bíblia na mão. Mas, residente urbana que sou, falo daquilo
que passou a ser a vida nas grandes cidades do nosso país
.

O que origina minha reflexão neste momento é o incêndio e queda
do prédio Wilton Paes de Almeida, no centro de São Paulo
, na madrugada
do feriado do Dia do Trabalho. Ao que parece a origem do incêndio e
consequente desabamento foi uma briga de casal no quinto andar, seguida
de uma explosão de panela de pressão. No entanto, o pastor da igreja
luterana vizinha ao prédio afirma que há muito tempo observava que o
mesmo se encontrava cada vez mais inclinado para a rua. Havia avisado às
autoridades, mas providências não foram tomadas.

E o que aconteceu diante de nossos olhos estupefatos foi aquele
prédio de 24 andares dissolvendo-se em chamas quando caía, qual um
castelo de cartas.
Os moradores eram desabrigados, sem teto, que
ocupavam o prédio por não terem onde morar. Muitos não poderiam
celebrar o Dia do Trabalho por estarem desempregados. Viviam em
pequenos espaços separados por divisórias improvisadas de madeirite e
papelão, cujo aluguel pagavam com ajuda de familiares, amigos etc. Hoje
encontram-se duplamente espoliados. Além de não terem trabalho,
tampouco têm teto.

Vários foram obrigados a passar a noite na rua, experimentando a
surpresa de estar vivos, mas de haver perdido tudo.
Foram os esforços de
uma vida que o fogo levou sem deixar vestígios. Quando saírem da
estupefação em que se encontram, terão de recomeçar do zero uma vez
mais. E viver sem saber se o perigo estará à espreita em um trem
descarrilado, em um tiroteio com balas perdidas a esmo que atingem alvos
não buscados, em um ônibus tomado por assaltantes, em um prédio
condenado que finalmente desaba.

As cidades brasileiras submetem seus moradores a situações de
perigo cada vez maiores.
No Rio de Janeiro, não se pode ir a determinado
lugar porque no caminho está havendo tiroteio. E assim como se busca nos
aplicativos do celular o caminho mais curto para chegar ao destino, busca-
se igualmente o caminho onde haja menos probabilidade de passar por um
tiroteio, ser atingido e nunca mais chegar.

As redes sociais converteram-se em alerta para situações de perigo
acontecendo dentro do perímetro urbano.
Não apenas tiroteios, mas
arrastões, rolés, assaltos. Enviam-se fotos de assaltantes que tentaram
entrar em residências disfarçados de técnicos, entregadores de pizza etc.

Nada, porém, é comparável ao que esse perigo constante faz com
as vidas dos pobres.
Se é verdade que todos os moradores das cidades
maiores do Brasil estão permanentemente submetidos a tais situações,
aqueles cuja vida é uma insegurança permanente experimentam essa
periculosidade diuturna em muito maior proporção.

Agora mesmo o centro de São Paulo está cheio de pessoas que
moravam no prédio desabado. Alguns se recusaram a ir para abrigos e
preferiram dormir na rua. O tempo vai esfriando e ficarão expostos à
intempérie e às temperaturas baixas, ao relento. Na pressa para escapar
do fogo e salvar a vida não puderam levar nada a não ser a roupa que
vestiam. Agora dependem da caridade de vizinhos e moradores da cidade
que lhes oferecem alimentação, abrigo, agasalhos.


Não se sabe ao certo a origem do incêndio. Nem se tem um
diagnóstico preciso sobre as condições do prédio. Possivelmente já
estivesse frágil e instável, vulnerável a qualquer acontecimento
inesperado. O fogo acabou de derrubá-lo e o país viu, estarrecido, a
fragilidade de sua estrutura. Os prédios vizinhos causam medo. Não
estarão na mesma situação.

Seguimos nós todos, teimosamente, insistindo em viver neste
país.
Acreditamos que vale a pena, que é possível
melhorar. Acontecimentos como este, no entanto, mostram com evidência
assustadora que ser brasileiro é, a cada dia que passa, uma aventura
sempre mais perigosa.
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