Viver na fronteira
O problema das migrações e das pessoas em situação de vulnerabilidade
devido à sua mobilidade se avoluma a cada dia no mundo inteiro. Especialmente na
Europa e nos Estados Unidos. Mas, mesmo no Sul do mundo - por exemplo, no Brasil
– onde se acha que isto não é problema nosso, o cardeal Claudio Humes lembrou a
ferida que temos com os índios.
Na Amazônia - região da qual é responsável o mesmo cardeal, enquanto ainda
há muitas tribos indígenas que não têm contato com o chamado mundo civilizado –
não sem ironia -, há muitos mais que vivem em mobilidade nas cidades, onde vagam
sem trabalho, sem abrigo, em estado de total vulnerabilidade. Despojados pela
colonização - antiga e nova - da identidade, língua, cultura, religião, agora esses índios
se movem sem rumo e sem meios de subsistência.
Entre as maiores vítimas da sociedade de hoje, no entanto, estão os migrantes,
os estrangeiros que chegam em grande número às fronteiras de países desenvolvidos
em busca de uma vida melhor para si e seus filhos. Escapam de situações de guerra e
devastação; são também vítimas da fome e da escassez; querem empregos fora do
lugar onde moram porque não encontram mais oportunidades.
Eles são o "outro”, o “diferente”, oferecido aos sentidos e à percepção de
abastadas sociedades do hemisfério norte. Muitas vezes, em vez de encontrar
acolhida e melhoria de vida como desejam e esperam, encontram a morte nas águas
do Mediterrâneo, no deserto do Arizona ou em qualquer outra circunstância. Trata-se
de um fenômeno que cresce em importância e configura uma nova forma de
escravidão.
Recentemente nos Estados Unidos, outro tipo de problema aparece: o das
crianças migrantes. Elas chegam sozinhas ou com os pais, dos quais muitas são
separadas. Estes foram deportados ou presos e os menores ficam em abrigos com
grades. O fato provocou tal indignação no mundo inteiro que o presidente Trump
recuou da aplicação radical e truculenta da lei, que determina a separação dos
menores das mães que entrarem ilegalmente no país. Esta lei existe desde o governo
Clinton.
Mas o problema persiste. Não só as inúmeras crianças que ficaram para trás
sem os pais já deportados, como a quantidade enorme que chega desacompanhada e
sozinha. Nesse momento, mais de 1800 crianças que chegaram com os pais
continuam separados deles. E essa cifra não inclui as milhares de crianças migrantes
que chegaram sozinhas à fronteira ao longo dos anos e que se encontram em refúgios
ou casas de acolhida em vários pontos do país.
A violência do problema do migrante e do estrangeiro hoje está ligada à crise
das construções religiosas e morais. A assimilação que havia dos estrangeiros por
parte de nossas sociedades em períodos mais remotos no tempo revela-se inaceitável
para o indivíduo moderno, que cuida zelosamente de sua diferença, não apenas
nacional e ética, mas essencialmente subjetiva, irredutível. E seria apenas no
momento em que o indivíduo moderno deixasse de considerar-se como bem resolvido
e glorioso, descobrindo suas inconsistências e seus abismos, suas "peculiaridades" ou
"estranhezas", em suma, que a questão poderia ser reformulada: não mais acolher o
estrangeiro em um sistema que o anula e rejeita, mas instaurar a convivência destes
estrangeiros que somos todos.
O espaço do estrangeiro é a errância, o nomadismo. E aquilo que é sua
condição é também sua ferida secreta. Mas ao mesmo tempo é aquilo que o protege
do domínio e controle de todos. Sempre ausente, sempre inacessível a todos. Sua
condição é aquilo que falta, a ausência que ele experimenta. Sua pátria é um país
desejado, embora ainda não habitado e sempre adiado, diferido. Este país, ele carrega
em seu sonho, e o vislumbra apenas além de si próprio, de seu tempo e espaço.
Com o estranhamento daqueles que o confrontam a partir de fora e que
simultaneamente o habita dentro de si mesmo, o estrangeiro desconfortável e
inadequado levanta animosidade e postula a questão sobre o fato de não estar em seu
próprio lugar, mas sempre no lugar do outro, ou o "outro" lugar. A distância entre ele, o
diferente e os locais ou cidadãos lhe dá uma distância privilegiada para ver o que os
outros não veem. Isso lhe dá a sensação de viver numa perene fronteira, relativizando
e sendo relativizado lá onde os outros estão submersos nos sulcos da nacionalidade,
da pertença cidadã etc. O desapego do estrangeiro na verdade é a resistência com a
qual ele ou ela consegue combater sua angústia matricida.
O migrante estrangeiro está condenado sempre ao silêncio. Mudo está,
mesmo em relação à sua língua materna. Habita e constrói comunidades cortadas da
memória do corpo, do idioma, das memórias da infância e da juventude. Carrega em
si mesmo como um cofre secreto onde habita a linguagem antiga que não pode mais
pronunciar.
E ainda que aprendendo a língua do outro, do país onde chega e tenta radicarse,
sempre haverá o sotaque que o denunciará, afastando-o dos habitantes locais e o
exilará a seu verdadeiro terreno linguístico: o silêncio. Silêncio que na verdade não é
somente imposto de fora. É interior, habita dentro dele ou dela.
Sua pátria, sua pertença, ficou para trás. Sua nova pátria é a fronteira, que ele
vive permanentemente, no espaço onde pisa e em sua alma permanentemente
cindida.
devido à sua mobilidade se avoluma a cada dia no mundo inteiro. Especialmente na
Europa e nos Estados Unidos. Mas, mesmo no Sul do mundo - por exemplo, no Brasil
– onde se acha que isto não é problema nosso, o cardeal Claudio Humes lembrou a
ferida que temos com os índios.
Na Amazônia - região da qual é responsável o mesmo cardeal, enquanto ainda
há muitas tribos indígenas que não têm contato com o chamado mundo civilizado –
não sem ironia -, há muitos mais que vivem em mobilidade nas cidades, onde vagam
sem trabalho, sem abrigo, em estado de total vulnerabilidade. Despojados pela
colonização - antiga e nova - da identidade, língua, cultura, religião, agora esses índios
se movem sem rumo e sem meios de subsistência.
Entre as maiores vítimas da sociedade de hoje, no entanto, estão os migrantes,
os estrangeiros que chegam em grande número às fronteiras de países desenvolvidos
em busca de uma vida melhor para si e seus filhos. Escapam de situações de guerra e
devastação; são também vítimas da fome e da escassez; querem empregos fora do
lugar onde moram porque não encontram mais oportunidades.
Eles são o "outro”, o “diferente”, oferecido aos sentidos e à percepção de
abastadas sociedades do hemisfério norte. Muitas vezes, em vez de encontrar
acolhida e melhoria de vida como desejam e esperam, encontram a morte nas águas
do Mediterrâneo, no deserto do Arizona ou em qualquer outra circunstância. Trata-se
de um fenômeno que cresce em importância e configura uma nova forma de
escravidão.
Recentemente nos Estados Unidos, outro tipo de problema aparece: o das
crianças migrantes. Elas chegam sozinhas ou com os pais, dos quais muitas são
separadas. Estes foram deportados ou presos e os menores ficam em abrigos com
grades. O fato provocou tal indignação no mundo inteiro que o presidente Trump
recuou da aplicação radical e truculenta da lei, que determina a separação dos
menores das mães que entrarem ilegalmente no país. Esta lei existe desde o governo
Clinton.
Mas o problema persiste. Não só as inúmeras crianças que ficaram para trás
sem os pais já deportados, como a quantidade enorme que chega desacompanhada e
sozinha. Nesse momento, mais de 1800 crianças que chegaram com os pais
continuam separados deles. E essa cifra não inclui as milhares de crianças migrantes
que chegaram sozinhas à fronteira ao longo dos anos e que se encontram em refúgios
ou casas de acolhida em vários pontos do país.
A violência do problema do migrante e do estrangeiro hoje está ligada à crise
das construções religiosas e morais. A assimilação que havia dos estrangeiros por
parte de nossas sociedades em períodos mais remotos no tempo revela-se inaceitável
para o indivíduo moderno, que cuida zelosamente de sua diferença, não apenas
nacional e ética, mas essencialmente subjetiva, irredutível. E seria apenas no
momento em que o indivíduo moderno deixasse de considerar-se como bem resolvido
e glorioso, descobrindo suas inconsistências e seus abismos, suas "peculiaridades" ou
"estranhezas", em suma, que a questão poderia ser reformulada: não mais acolher o
estrangeiro em um sistema que o anula e rejeita, mas instaurar a convivência destes
estrangeiros que somos todos.
O espaço do estrangeiro é a errância, o nomadismo. E aquilo que é sua
condição é também sua ferida secreta. Mas ao mesmo tempo é aquilo que o protege
do domínio e controle de todos. Sempre ausente, sempre inacessível a todos. Sua
condição é aquilo que falta, a ausência que ele experimenta. Sua pátria é um país
desejado, embora ainda não habitado e sempre adiado, diferido. Este país, ele carrega
em seu sonho, e o vislumbra apenas além de si próprio, de seu tempo e espaço.
Com o estranhamento daqueles que o confrontam a partir de fora e que
simultaneamente o habita dentro de si mesmo, o estrangeiro desconfortável e
inadequado levanta animosidade e postula a questão sobre o fato de não estar em seu
próprio lugar, mas sempre no lugar do outro, ou o "outro" lugar. A distância entre ele, o
diferente e os locais ou cidadãos lhe dá uma distância privilegiada para ver o que os
outros não veem. Isso lhe dá a sensação de viver numa perene fronteira, relativizando
e sendo relativizado lá onde os outros estão submersos nos sulcos da nacionalidade,
da pertença cidadã etc. O desapego do estrangeiro na verdade é a resistência com a
qual ele ou ela consegue combater sua angústia matricida.
O migrante estrangeiro está condenado sempre ao silêncio. Mudo está,
mesmo em relação à sua língua materna. Habita e constrói comunidades cortadas da
memória do corpo, do idioma, das memórias da infância e da juventude. Carrega em
si mesmo como um cofre secreto onde habita a linguagem antiga que não pode mais
pronunciar.
E ainda que aprendendo a língua do outro, do país onde chega e tenta radicarse,
sempre haverá o sotaque que o denunciará, afastando-o dos habitantes locais e o
exilará a seu verdadeiro terreno linguístico: o silêncio. Silêncio que na verdade não é
somente imposto de fora. É interior, habita dentro dele ou dela.
Sua pátria, sua pertença, ficou para trás. Sua nova pátria é a fronteira, que ele
vive permanentemente, no espaço onde pisa e em sua alma permanentemente
cindida.