A fome do outro: problema espiritual
Como em todos os anos, a Igreja Católica no Brasil lança a Campanha da Fraternidade por
ocasião da Quaresma. Nesse tempo em que os cristãos são convocados a converter-se e
preparar-se para celebrar o mistério pascal de Jesus, centro da sua fé, a Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil lança um alerta, um apelo. Escolhe um tema candente e desafiante para os
quarenta dias que precedem a Páscoa.
Este ano o tema é a fome. A fome que rói as entranhas. Aquela que impede de pensar e
de viver. A fome que atormenta famílias inteiras, cujas crianças sofrem o flagelo da
desnutrição. E por que a fome? Porque o Brasil voltou a seu macabro mapa. Mais de 30 milhões
de brasileiros não têm o que comer. Ainda que surpreenda, ainda que estarreça em um país
com tantos recursos naturais, com uma agricultura pujante, essa é a realidade. Muitos
brasileiros passam fome. E entre esses, não poucos são vitimados e morrem de desnutrição e
insegurança alimentar.
Perguntarão alguns: mas por que a Igreja tem que se ocupar com este problema, que é
econômico, social? Não é uma questão religiosa. Isso deveria ser pauta dos governos em todos
os níveis, inclusive das universidades. Por que a Igreja situa em seu centro de atenções no tempo
litúrgico mais importante do ano esse problema tão material? Não deveria propor algo que
toque mais de perto o espírito, a vida de oração, o crescimento devocional de seus fiéis?
Acontece que a fome é, sim, um problema espiritual. E dos mais importantes. Porque
está diretamente conectado à vida. Sem comer, não se vive. E o Deus que Jesus de Nazaré veio
anunciar e chamou de Pai é o Deus da vida. Tudo que deseja é que seus filhos amados tenham
vida em abundância. A fome portanto é uma agressão das mais violentas ao projeto de Deus,
o Reino da justiça, da paz e do amor. Por isso, a CNBB convoca todos os cristãos a se
responsabilizarem diante deste flagelo que voltou a crescer no país.
Os bispos do Brasil, portanto, com a Campanha da Fraternidade 2023 são claros em sua
proposta: a fome não é um problema alheio a Deus, à fé e à religião. Pelo contrário, está no
centro da vida e do projeto de Jesus e de todos aqueles e aquelas que nele creem. Como diz o
grande pensador ortodoxo Nikolai Berdiaev: “Se eu tenho fome é um problema biológico. Se o
meu irmão tem fome, é um problema espiritual” .
A Igreja deseja despertar os sentidos, a cabeça e o coração de todos para uma situação
que não pode ser tratada com indiferença e considerada normal. O fato de uma pessoa, criatura
de Deus, passar fome e não ter o que comer; ter que ir para os fundos dos açougues esperando
encontrar algum osso para dar a sua família; ter que revirar latas de lixo como os ratos para
encontrar sobras das mesas fartas, não pode ser tratado com um dar de ombros indiferente,
como se não fosse problema meu.
O grande escritor brasileiro Fernando Sabino escreveu uma memorável crônica - Notícia
de jornal - sobre um homem que passava fome na rua e ali acabou morrendo sem receber o
socorro de ninguém.
“ Nada se sabe dele, senão que morreu de fome. Um homem morre de fome em plena
rua, entre centenas de passantes. Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um
mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa –
não é homem. E os outros homens cumprem seu destino de passantes, que é o de passar.
Durante setenta e duas horas todos passam ao lado do homem que morre de fome, com um
olhar de nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum, e o homem
continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os homens, sem socorro e sem
perdão. Não é de alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria
de ser da minha alçada? O que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.“
A Igreja do Brasil não quer que isso aconteça. E mais: deseja dizer aos cristãos que isso
não pode acontecer. Nunca. A fome do outro é problema meu, nosso. Por isso, como lema da
Campanha da Fraternidade temos a bela frase do Evangelho de Marcos que narra a
multiplicação dos pães: “Dai-lhes vós mesmos de comer”.
Jesus viu a multidão faminta e compadeceu-se dela. Os discípulos argumentavam que
era melhor mandar todos embora, que não tinham dinheiro para comprar comida. O Mestre
disse, então, que o que tinham pusessem em comum. E afirma o evangelho que todos comeram
e ficaram saciados.
Não há que delegar, terceirizar, responsabilizar os outros. Dizer que isso é problema da
prefeitura, do governo do estado, da presidência da República. “Dai-lhes vós mesmos de
comer”. A fome do outro é um problema espiritual e ao mesmo tempo um mandato. Quem tem
fome não pode esperar. Precisa ser alimentado. E se eu me deparei com alguém com fome, sou
eu que devo dar-lhe de comer, repartindo o que é meu para que todos sejam saciados