Mensagem do Cardeal-Patriarca para a Quaresma

“Para perfeitamente viver e conviver”

1. Entramos em Quaresma, irmãos caríssimos. Um tempo que havemos de tomar como ocasião especial de graça, que outra não há maior do que a que nos leva à conversão.

Graça grande é esta, de reconhecermos o que não podemos só por nós e o que alcançaremos só com Deus. Mas demoramos tanto… Pecado é outro nome da resistência à única convivência que nos realizaria, ou seja, com Deus – e com todos a partir de Deus. Com Deus, realmente aceite como princípio, meio e fim de tudo o que de bom possa ser e acontecer, connosco e no mundo. Pelo contrário, insistimos em fazer as coisas à nossa maneira, em levar a vida segundo a nossa disposição, olhar os outros a partir de nós. Queixamo-nos dos outros, que não aceitamos na verdade do que são. Queixamo-nos até de Deus, que não aceitamos como é.

Nada disto é realista. Porém, quando não vivemos a partir de Deus e não acolhemos a realidade dos outros como tais, alheamo-nos da nossa verdade relacional e fazemos da vida um desastre. Um desastre próprio e grandes desastres por esse mundo além.

O propósito essencial só pode ser este: estar decididamente do lado do Deus da Vida, que nos levará a uma convivência total, de presença e de espírito. De presença, para acompanharmos cada ser humano no arco inteiro da existência terrena, da conceção à morte natural. De espírito e bom espírito, para olharmos cada pessoa com o olhar de Deus, positivo e benévolo, criador e recriador.

Iniciemos uma Quaresma verdadeiramente libertadora de quanto nos impede de viver e conviver com Deus e com os outros. A tal nos conduzirá o Deus da Vida, como em Jesus Cristo se revela, como no Espírito nos recria. Com Ele acompanharemos cada pessoa, numa atitude envolvente e paliativa, em especial quando mais frágil de corpo ou de espírito. Da conceção à morte natural, como repetimos e bem, sem esquecer tudo o que decorre entretanto na vida de cada um.

Tudo é para acompanhar com um olhar de benevolência e estímulo, como o de Jesus quer rebrilhar no nosso. Mesmo quando haja lugar à declaração e correção do que está mal, para que também os outros se tornem melhores. Numa sociedade de comunicação intensa, em todo o tipo de redes sociais ou outras, como é necessária e urgente uma fortíssima Quaresma de sentimentos e olhares!

Creio que muita da distorção mediática do mundo, de que depois nos queixamos, provém da distorção com que o olhamos e sentimos a partir de nós e só de nós. Em grande parte, os media tanto induzem como refletem o nosso próprio coração.

- Quando nos queixamos de más notícias e sempre piores umas do que as outras, não nos deveríamos queixar também da nossa predisposição para depreciarmos a realidade alheia, mal compensando frustrações? Há um círculo de oferta e procura no mundo mediático, de indução mútua entre desejo e oferta. Dão-nos o que procuramos e assim mesmo o sustentamos. Um olhar benévolo acabaria por atrair benevolência, assim como Deus persiste em olhar-nos e converter-nos.

A Quaresma, quando feita a partir da Palavra de Deus, quando vivida com mais atenção aos outros, faz-nos olhar a fundo e não à superfície. A Bíblia diz que Deus vê o coração. E não tem modo mais belo de se referir a Deus senão como coração também. A graça especial da Quaresma é precisamente esta, de nos tocar o coração e nos converter à realidade, no que tem de mais determinante e profundo.

O mundo todo precisa duma Quaresma assim. Mas, para não cairmos na inveterada falta de condenarmos nos outros o que não resolvemos em nós, comecemos pelo nosso próprio coração, exposto e disposto à graça de Deus. Acolhendo a Palavra, fazendo Penitência, acorrendo a quem precisa, envolvendo a todos num amor que cuida e não deixa ninguém desistir de viver.

2. Ainda no rescaldo de um século de terríveis falhanços ideológicos, esta é, antes de mais, uma conclusão realista. Bem pelo contrário, não houve movimento social, cultural ou mesmo político que trouxesse de facto o bem e o progresso que não proviesse de corações tão lúcidos como generosos, desalienados de si para se reencontrarem nos outros e para os outros. Com maior ou menor consciência disso, coincidiam com o coração de Deus, como em Jesus Cristo se manifestou no mundo.

Já o deveríamos saber. Retomemo-lo francamente neste início quaresmal. Como bradava o profeta Joel: «Diz agora o Senhor: “Convertei-vos a Mim de todo o coração, com jejuns, lágrimas e lamentações. Rasgai o vosso coração e não os vossos vestidos!». Como clamava São Paulo: «Nós vos pedimos em nome de Cristo: reconciliai-vos com Deus!»Muito especialmente, atendamos ao Senhor Jesus, insistindo na profundidade com que tudo deve acontecer em nós. Na verdade, ficando por de fora, a alienação persistiria. Continuaríamos a ser apenas nós, falhados a prazo nas pretensões que tivéssemos. É uma advertência forte: «Tende cuidado em não praticar as vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles!».

As boas obras farão muito bem, mas são de Deus em nós, lucrando todos. Agradecem-se a Deus, não se atiram à cara de ninguém. Residem antes de mais nos corações. Aí mesmo, onde «o Pai, que vê o que está oculto, dará a recompensa».

A Quaresma chama-nos à verdade, condição básica da felicidade. Por isso a primeira bem-aventurança pede-nos um espírito pobre, que só em Deus confie (cf. Mt 5, 3); e o primeiro degrau da ascensão espiritual é a humildade, que Deus exaltará depois, como Maria cantou por si e por nós (cf. Lc 1, 48.52).

Nas tentações que venceu, Jesus deu-nos a regra para as vencermos também, como agora nos dá a graça para que assim aconteça. E a regra é como sabemos: face ao ter, ao parecer ou ao poder, a recusa de tudo o que se anteponha a Deus – Fonte da vida plena e da convivência perfeita.

3. Na sua Mensagem para a presente Quaresma o Papa Francisco requer a verdade da nossa relação com Deus, que nos acalenta a relação com todos. Põe-nos do lado do Pai, para bem dos seus filhos – os outros e nós mesmos.

Entre muitas outras frases fortes e sugestivas, diz-nos o seguinte: «Dedicando mais tempo à oração, possibilitamos ao nosso coração descobrir as mentiras secretas com que nos enganamos a nós mesmos, para procurar finalmente a consolação em Deus».

Consolação em Deus que, com Deus, chegará aos outros. É particularmente mobilizadora esta frase: «Cada esmola é uma ocasião de tomar parte na Providência de Deus para com os seus filhos». Retenhamo-la com atenção, pois, ficando só por nós, apenas somaríamos queixas. Se partirmos de Deus, seremos com Ele a resposta ao mundo. E ficaremos admirados, reproduzindo-se nesta lógica os milagres do seu Reino.

Experimentaremos o poder de Deus, que não desiste do mundo. Muito, muitíssimo do que falta corresponde à nossa demora em estar do lado de Deus, para o bem de todos – dos que nos estão próximos e daqueles de que devemos aproximar-nos, com olhar compassivo e coração caloroso.

Só assim nada nos faltará também, prossegue o Papa, certo que está da paternidade divina: «Se hoje Ele Se serve de mim para ajudar um irmão, como deixará amanhã de prover também às minhas necessidades, Ele que nunca Se deixa vencer em generosidade?». Também em relação ao jejum, ocasião de partilha e educação do desejo: «O jejum desperta-nos, torna-nos mais atentos a Deus e ao próximo, reanima a vontade de obedecer a Deus, o único que sacia a nossa fome».

Assim mesmo ganharemos tudo em corresponder a sério à graça quaresmal. Por dentro, pelo coração, onde as coisas começam a mudar. Porque mudamos nós, nos primeiros alvores da Páscoa de Cristo!

Sé Patriarcal, Quarta-feira de Cinzas, 14 de fevereiro de 2018

† MANUEL, Cardeal-Patriarca
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