CRISTINA: O rosto misterioso de Deus...
Tenho 09 anos de idade; sou de uma família de agricultores. Somos mais de 6 irmãos. Sou a segunda filha deste casal. Minha mãe a mais bela mulher, a mais forte e a mais santa. Meu pai um homem culto, com um gosto pelos romances. Desde muito cedo nos ensinou a ler e fazer as primeiras contas, e a escrever. Tinha o costume de ler romances para minha mãe, enquanto ela preparava as refeições ou bordava. Porém, meu pai também era um homem extremamente violento. O que mamãe tinha de bondade e ternura, meu pai tinha de maldade. Batia em nós com facilidade, era impaciente, exigente. Ensinou-nos a rezar, respeitar os outros, ser honesto, ver no pobre o próprio Cristo, partilhar com eles os bens. Tinha bons princípios morais, mas era um doente sexual. Vivia continuamente uma tara, um fetiche... E por ai que vai se desenvolver um duelo entre a graça e o pecado.
Na minha ingenuidade infantil começo a sentir que o procedimento de meu pai para comigo é estranho. Contradizia tudo o que ele mesmo me havia ensinado: não pecar contra castidade. Agora tudo estava ao avesso, pois meu pai estava decidido a ter relações sexuais comigo.
A nossa casa virou um inferno. Tudo e todos respiravam medo, desorientação, tristeza... A muralha dos infernos havia caído e todos os demônios estavam a vontade para semear a discórdia, a violência, torturar, gargalhar, violentar, dividir... Respirava-se, por toda a parte, um cheiro de enxofre deixando atrás de si um rastro profundo de sofrimento, dor, lágrimas e desorientação...
Eu me voltava para Deus e os livros, inclusive o pequeno catecismo da doutrina cristã que me orientava como guardar minha vida para Deus. Virtudes cristãs contadas pela vida dos santos. Desejava ser santa e agradar muito a Deus. Li um livro intitulado a “A Virgem Cristã” no qual se exaltava a guarda da virgindade como a maior virtude cristã. Estava decidida a fazer o que mais agradasse a Deus. Li também a história de santa Maria Gorete, e me fortaleceu no meu propósito. Dedicava-me a orar, enquanto meu pai insistia com as suas investidas. Ele me humilhava diante de meus irmãos e de minha mãe, me batia, me deixava passar fome. Tratava-me com desprezo. Minha mãe chorava e nada podia fazer, pois também ela era vitima de sua violência. A vida tornou-se um inferno. O ambiente de minha casa era fétido. Em tudo se respirava ódio, violência, medo, promiscuidade, gestos obscenos, gracejos... La estava eu me sentindo a menor de todas as criaturas. Porém dentro de mim uma muralha se levantará e uma invencível força me habitava. Vivia o desejo inquebrantável de não ofender a Deus.
Nas leituras havia entendido que era possível fazer pequenos sacrifícios para conservar e obter graças de Deus, para ser fiel a Ele e ter a sua proteção. Então comecei a ofertar a Deus as coisas que mais gostava. Se ganhava um pedaço de bolo de mamãe, não comia e oferecia como oferta dando para um irmão comer. Rezava o terço ajoelhado sobre pedras ponte agudas, percorria caminhos de joelho implorando ao Senhor a graça de não ofendê-lo. Enquanto isso, meu pai crescia em violência contra mim por não aceitar suas propostas. Levava surras, tinha as roupas arrancadas de meu corpo, rasgadas. Algo dentro de mim me fazia forte e incapaz de ceder a seus caprichos. A qualquer preço me sentia convidada a ser fiel a Deus, meu verdadeiro Pai. Nada me tirava de meu propósito. Relaciona-me com Deus, as escondidas fazia meus pequenos sacrifícios e rezava muito... Muito... Deus era minha única esperança. Nos finais das tardes me escondia, encostada nas paredes de uma velha casa, com os olhos fitos no infinito para rezar. Pedia ao Senhor a sua proteção, e Ele enchia meu coração de paz coragem e esperança. E Deus Pai me envolvia com suas mãos protetoras, me envolvendo no seu amor e em sua ternura. Saía da oração fortificada e com a certeza de sua proteção. Sentia-me fraca fisicamente por meu pai me negar alimentação, mas forte e alimentada pela força de Deus. Desejava morrer para sumir do inferno que meu pai nos fazia viver. Quanto mais era humilhada, espancada, insultada e desprezada por meu pai, mas Deus me fortalecia. Não estava só, pois Deus lutava em mim e por mim.
Em um domingo desses em que a vida é amarga como fel e tudo parece trevas, e a vida um túnel sem saída, sentei-me debaixo de uma árvore, coloquei ao meu lado uma pilha de revistas que havia levado comigo, para ler e assim esquecer por um momento tantas desgraças. Encontrei então entre as revistas uma antiga “História Sagrada”. Estava amarelada pelo tempo e faltando algumas páginas. Li a primeira página que sobrara desta velha “História Sagrada”. E como por encanto, lá estava à resposta que buscava! A página sobre a qual caíram meus olhos era a história de como Constantino, imperador de Roma, havia vencido uma de suas batalhas. O texto dizia o seguinte: Enquanto combatiam e estavam sendo derrotados e sem saber onde encontrar forças, Constantino voltou seu olhar para o céu e viu então uma cruz luminosa e a seguinte frase: “Com este sinal vencerás”. Neste momento algo se moveu dentro de mim. Senti uma profunda alegria e muita paz. Dentro de mim, uma voz ecoou: “com este sinal vencerás”. Eu acabara de encontra-me com um inefável tesouro. Sim com a cruz eu também venceria todas as forças do mal. Recolhi as revistas e guardei com carinho a velha História Sagrada, para ler em outro momento. Fui então à busca de um velho Cristo crucificado que havia visto em uma caixa de bagulhos. Encontrei-o, tomei-o nas mãos e o beijei. Uma certeza se fez dentro de mim: Eu poderia morrer, mas não pecar porque aquela cruz era meu escudo e minha salvação, nada seria mais forte que o crucificado!
Meu pai ainda tornara-se mais terrível. Além de todo o mal que nutria contra mim, agora me torturava com ameaças de morte às escondidas de minha mãe. Dizia-me: Se você não fizer o que eu quero vou mata-la! E me ameaçava ora com um pedaço de pau, ora com uma faca, ou um revolver. E dizia: Vou matar-te a pauladas, mas acho que isso não é suficiente para você, vou fazer diferente, vou furar todo seu corpo com a faca, até você morrer. Será que é isso que você merece? E tomando uma faca nas mãos me ameaçava. Desisti, dizia ele, vai dar muito trabalho, você não merece o meu cansaço, vou matar-te com tiros. Tomava o revolver e apontava para minha cabeça: Vou estourar seus miolos! E mudava o lugar onde colocava a arma em meu corpo: Vou dar um tiro em seu coração! e permanecia com a arma apontando para o meu peito. Eu permanecia imóvel, petrificada de medo, e sentia que meu fim estava próximo. Esta sessão de tortura durava umas três horas que era o tempo que mamãe estava fora de casa. Quando tudo acabava eu também estava acabada.
Ia fazer o trabalho que mamãe pedira para fazer. Mamãe chegava, e perguntava o que havia acontecido. Eu nada podia dizer. As ameaças eram tantas que não ousava dizer nenhuma palavra. Passeava no quintal, tocava a cruz, e rezava. Depois retornava a rotina de trabalho até que findasse aquele dia infernal. Dentro de mim, havia uma cansada confiança em Deus Pai que me fazia perguntar: Até quando Senhor? Até quando? Parecia-me não haver saída.
A noite caía e eu retirava-me sozinha para meu quarto, para suplicar a Deus e aos santos sua proteção. Fazia a novena a S. Judas Tadeu, intensificava a oração a medida que crescia o sofrimento. Num grito calado de dor e horror adormecia cansada pelo peso do dia. A noite também tinha seus fantasmas, pois meu pai levantava, e ia ao nosso quarto para nos molestar. Sentia-me cansada com toda aquela situação que me parecia interminável. Dia após dia, noite após noite. Raramente havia tréguas quando aparecia em casa alguma visita. Ficava feliz! Em fim por algum tempo o fogo dos infernos deixava de arder. Sentia-me humilhada envergonhada diante de mim, de minha mãe e de meus irmãos. Como meu pai me repetia sempre: “Uma criatura amaldiçoada”.
Perdi a alegria de viver e também os sonhos. Deseja que aquela situação acabasse mesmo, que eu morresse. Não suportava mais viver assim. Pedi a Deus Pai a graça da morte, e resolvi por minha própria conta tirar minha vida. Morrer, naquele momento, era viver. Estar livre de meu pai e de todos os sofrimentos que ele me causava. Era para mim a única alternativa, diante de minha pouca idade, e sem nenhuma perspectiva de sair. Rezei e disse a Deus que por amá-lo tanto queria estar com Ele. Não aguentava mais viver assim. Decidi suicidar-me, buscar um lugar para me enforcar. Tomei a corda e a coloquei sobre o meu pescoço, pendurei-a no galho de uma árvore, que quebrou com o peso do meu corpo. Desisti então de praticar tal ato, pois entendi que Deus não queria isso para mim.
A situação não mudou. Rezava, fazia sacrifícios, e tentava entender o que Deus queria de mim. Meu pai tornara-se ainda mais violento com as mais diversas formas de tentar render-me. Os castigos ainda tornaram-se mais violentos: Batia-me, me machucava, e me humilhava ainda mais. E agora me fazia carregar pesos que quase não dava conta, enquanto ele tocava meu corpo. Sufocamentos, palavrões, investidas. Perdi peso e estava muito triste. Decidi, depois de rezar e entregar minha vida a Deus, suicidar-me novamente. Mas, desta vez também não funcionou. Ingeri formicida, que me diziam ser fatal. Tomei uma colherinha em um copo de água; tomei e enterrei a colher e o copo, e sentei em uma pedra esperando a morte. Passei muito mal. Mamãe me cuidou. Não disse nada a ninguém, pois temia os castigos. Meu corpo sofreu uma forte alergia, que formou bolhas, mamãe me enrolou em folhas de bananeira. Senti muita dor de garganta, de estomago, tive diarreia. Aos poucos, recuperei minhas forças e entendi que Deus Pai me queria viva. Decidi não atentar contra minha vida.
Continue rezando pedindo a Deus Pai e a seus santos que me livrassem daquela situação. As investidas de meu pai retornaram com toda violência. Senti que minhas forças haviam se esgotado, porém, dentro de mim, crescia a certeza de que Deus Pai iria agir. Tomou conta de mim um sentimento de abandono e maior confiança em Deus Pai e em seus santos. Continuava lutando com uma força que não era mais minha. Era o próprio Deus que lutava em mim e por mim. Sim é Deus em sua misericórdia e ternura que cuida do desvalido, dos sem força dos abatidos... Assim Deus me visitava para arrancar-me do meu monturo.
ABANDONADA COMO UMA COISA...
Numa bela manhã de abril, com um céu azul de infinda beleza, minha vida deu um tranco, e nunca mais seria a mesma. Estávamos na quaresma, e mamãe me falou com tom forte e firme: Você quer ser prostituta em casa ou na rua? Respondi: na rua!
Sem mais uma palavra, mamãe mandou me colocar o vestido de bolinhas azuis e brancas que ela mesma havia confeccionado. Então ela me disse: nós todos vamos para a cidade. Algo muito ruim aconteceu com sua irmã... Eu pude imaginar o que havia acontecido. Meu pai estava furioso, mamãe chorava e ninguém dos irmãos fez pergunta alguma. Minha irmã mais velha estava grávida de meu pai. Meus irmãos ficaram em um hotel, na primeira cidade. Eu segui com meus pais uns oitenta quilômetros e fui deixada embaixo de uma acácia coberta de flores amarelas. Seus galhos quase tocavam o chão, suas flores eram pequenas e perfumadas. Devia ser umas 15h00. Mamãe entrou no carro e me disse: Cristina talvez você nunca mais nos veja... Ela chorava muito; meu pai não pronunciou uma palavra e o carro desapareceu rapidamente...
Eu estava petrificada, paralisada, fiquei por um tempo imóvel. O mundo era terrível para mim. Olhei para a direita, para a esquerda, e chorei... Estava só terrivelmente só. O mundo tornou-se imenso e ameaçador; tremia de medo. As lágrimas não paravam de rolar. A dor tornou-se maior que o choro. Ainda imóvel tentado entender o que acabará de acontecer uma palavra se fez ouvir no imenso silêncio... “Há um pai que não abandona ninguém...” Deus Pai me abraçava e me envolvia com sua ternura e sua força. Respirei! E na imensidão do mundo comecei andar...
Andava errante, como havia sido minha pequena vida até agora, música desafinada, caminho sem chegada, casa que não era lar, pai que não podia ser pai... Mas, no meio do caos um Deus que tudo podia... Em minha frente uma longa estrada com muitos caminhos, mas eu não tinha caminho. Andei desencaminhada, e a noite começou a cair e com ela também um grande medo rezei...
Com a noite vieram também todos os fantasmas que a habitavam... As sombras escuras e longas... Tudo se recolhe e encolhe. Também eu, pequena por dentro e por fora, com medo, com fome, com sede, só... Terrivelmente só. Tinha que encontrar um lugar para dormir. Avistei uma Igreja grande com um imenso pátio aberto com barracas de madeira, para as festas. Escolhi uma, circular e fechada, que tinha uma pequena porta. Lá me recolhi para passar a noite debaixo de uma prateleira, no chão escondida, com muito medo; deitei-me e lá permaneci.
Tudo era muito estranho: barulhos, escuridão, dor, tristeza, saudade... Lá estava eu, com minha dor, na temerosa solidão da noite... Chorei baixinho, pois temia que alguém escutasse. Assim foi minha primeira noite de tantas outras.
Dormir, nem pensar... Quando percebi que a aurora cobria os céus saí do meu esconderijo e fui sentar-me no meio fio enquanto o dia acabava de amanhecer. Permaneci por um bom tempo, ali sentada, sem eira nem beira. A dor da alma se espalhava no meu corpo, como a chuva sobre a terra. Os pensamentos deslizavam: meu pai, minha mãe, suas últimas palavras... Dor, muita dor!... Tudo era passado e presente, minha vida...
A cidade era pequena e bastante vazia. O dia clareou, apareceu o sol e com ele as pessoas. O sino na Igreja tocou numa cadencia chorosa dentro de mim. Irmãs com hábitos escuros se dirigiam para a Igreja. Olhei, observei... O sol aqueceu meu corpo e os longos caminhos que não levavam a lugar nenhum, pois eu não tinha lugar. Senti muita fome e queria pedir pão, mas o medo tomava conta de mim. Por fim, a fome venceu. Bati em uma casa, e pedi, desconfiada, um pedaço de pão... A senhora me olhou espantada. Apareceu na janela uma menina, e outra... Tremia de medo. A dona me deu um generoso pedaço de pão, enquanto na janela um homem observava; era seu marido. Tomei o pão e corri cheia de medo. Depois, um pouco longe em um lugar sem movimento sentei na beira da calçada e comi o pedaço de pão.
Assim sucederam longos dias e demoradas noites: Fome, medo, dor, saudade, tristeza, solidão. Aos poucos fui conhecendo aquele pequeno lugarejo. Ora mendigava, ora chorava, ora xingada, ora pedia comida, ora procurava no lixo... Meu interior foi se organizando.
Meu vestido estava sujo, meus cabelos desalinhados sem pentear, sentia meu próprio mau cheiro. Lavava-me às escondidas, em uma torneira atrás da Igreja, onde também tomava água. Era um lugarejo calmo com poucas residências, um vilarejo. A rua também era calma. Fui me organizando interiormente, e comecei a pensar: eu sei trabalhar será que acho alguma coisa para fazer, assim encontrarei também um lugar para ficar. Eu sei lavar louças, roupas no riacho, capinar, varrer o chão...
Andando, me deparei com um grande casarão cercado por todos os lados. Tinha um grande portão, também fechado. Sentei-me na frente do portão. Havia muitas vozes de crianças. É uma escola!... Às 13h00, mais ou menos, o portão se abriu e saiu uma menina um pouco maior do que eu. Observei. Ia até um lugar, não distante, buscar ramos de árvore para varrer, como eu fazia todas as quintas-feiras na casa de meus pais... Mas, o dia findou e eu voltei para meu esconderijo. Rezei, chorei, e pedi que o Senhor cuidasse de mim.
Raiou um novo dia, e lá fui eu a sentar-me em frente do grande portão, esperando pela menina que saiu mais ou menos no mesmo horário. Perguntei se ia buscar ramos para varrer o chão. Ela respondeu que sim. Perguntei se podia acompanhá-la. Ela respondeu afirmativamente com a cabeça. No caminho perguntei se ela morava ali, e se era uma escola. Ela me disse que era um colégio de freiras, e que muitas crianças moravam lá. Algumas eram ricas, e não trabalhavam; outras, como ela, não tinham pais e então trabalhavam para poder morar lá. Eu não tenho pai nem mãe, e por isso moro aqui desde sempre... Perguntei-lhe: Será elas não me querem também? A pergunta ficou no ar, e pareceu-me que ela ficou com medo. Chegamos ao grande casarão e a menina se despediu rapidamente, quase sem palavras. Cada uma seguiu o seu rumo: eu para meus caminhos e ela para sua casa. Nova noite, novo dia!
Alimentava em mim esperanças de poder morar naquela casa. No dia seguinte fui ao encontro da menina, da qual agora sabia seu nome: Iraídes. Tornamo-nos amigas. Perguntei sobre a possibilidade de morar naquela casa. Ela nada disse. Perguntei se conhecia alguém que pudesse me pegar, para trabalhar. Ela conhecia um lugar, onde ela havia trabalhado antes, que talvez a senhora me daria trabalho. Seguimos para lá no dia seguinte. Era uma senhora muito diferente. Depois soube que era russa e vivia na mesma rua e na mesma quadra.
A senhora russa me acolheu... Não fez perguntas. Pensei que ela não falasse português. Mostrou-me o trabalho, e também o lugar onde iria dormir, em um pequeno paiol, fora da casa. Para mim, isso já era muito bom. Disse, também, que nada pagaria por meu trabalho, pois era a troco da moradia e da comida... Para mim era o céu, pois acabaria o pesadelo de morar na rua. Não precisaria mais mendigar nem comer do lixo. Mandou-me tomar banho e me deu algumas roupas e calçados usados. Estava muito bom!
Trabalhava limpando um grande chiqueiro dos porcos cuidando da alimentação dos mesmos. Dormia ao lado das galinhas, mil vezes melhor do que debaixo daquela prateleira morrendo de medo. A comida não era suficiente. Comia um pouco de milho quebrado que cozinhava para os porcos, e quando assava pão para ela em um grande forno de lenha roubava um que devorava rapidamente. A fome nos assemelha com os animais, devorando os alimentos. Penso que ela desconfiava de que eu pegasse um pão, pois contava várias vezes os mesmos. Ela era idosa, e esquecia a quantidade que fazia. Assim se encerrava um estágio de minha vida: de nada ter e tudo possuir. Deus Pai continuava em minha vida, e eu agradecia por sua proteção.
Havia perdido minha casa, meus pais e meus irmãos, mas tinha tudo. Éramos dois: Deus e eu.
Não fiquei muito tempo com esta senhora. Logo sem explicações ela me levou para as freiras, o que para mim era quase um céu. Trabalhava muito, mas dormia em um lugar seguro e me sentia protegida. Era um internato de meninas e meninos, e acolhiam também meninas como eu, abandonadas. Ao nosso jeito dividíamos nossas dores, nossas inseguranças e nossa desproteção, A dor comum nos unia e irmanava no medo e na insegurança.
Fiquei doente e fui suspeita de hanseníase. Tinha ficado muito barriguda o que despertou a suspeita de que estivesse grávida. O médico perguntou o que eu comia. Respondi que onde morava antes comia milho quebrado que cozinhava para os porcos. Então ele disse às irmãs que estava tudo explicado: O milho sem sal e sem gordura faz a barriga crescer...
Permaneci no hospital uns 20 dias, como indigente e isolada. Foi um tempo eterno. Sofri e chorei. Um mar de dor, saudades, solidão... Sentia saudade de rosto humano, pois não via ninguém. Saudade de pessoas da espécie humana!... Tudo passa, como passam as coisas nesta vida.
Chegou o dia de deixar o hospital, pois os exames não acusaram nada a não ser desnutrição, e como disse o médico, “problemas emocionais”.
Quando recebi alta estava bastante enfraquecida. Em minhas entranhas senti nascer uma profunda gratidão a Deus Pai que em todos os dias de minha vida esteve comigo. Brotou dentro de mim o desejo de pertencer e servir este único Amor. Minha vida ganhou sentido. Deus vive em mim e eu N’Ele. Daqui para frente só a Ele serviria. Aquele que desde sempre me amou, me cuidou, me fez companhia, me carregou em seus longos braços. Enquanto ia rezando e descia a escada que me levava para meu dia a dia. A mesma escada que havia subido chorando, agora descia sorrindo. Não que a vida tivesse mudado, mas tinha ganhado um novo sentido.
Desde então nunca mais fui à mesma. Sabia a quem daria minha vida. Viveria para Ele, daria a minha vida como um hino de gratidão... E foi esta intuição que segui durante toda a minha vida.
Vivi muito. Pedalei muito para me equilibrar... Cometi erros. Bem mais tarde encontrei meus pais e irmãos. Cuidei de meu pai no hospital; nos seus últimos tempos de vida troquei suas fraldas, atendi em suas necessidades, o alimentei, fiz companhia para ele... Quanto a minha querida mãezinha, fiquei com ela também no final de sua vida no hospital. Durante 40 dias atendi a suas necessidades, sentada em uma cadeira de palha. Ela faleceu em meus braços. Providencie seu velório e viajei durante uma noite toda com seu corpo levando-o para meus irmãos. Lembrei-me do Amor incondicional de Deus para com todas as suas criaturas.
Mas, voltemos ainda ao internato, empenhada nas obrigações e responsabilidades dadas a cada uma de nós. Lavar roupas, limpar o quintal, carregar tijolos, pedras, puxar lenha... Não era trabalho leve, mas estava feliz e sentia poucas saudades. Ali havia algo muito especial para mim: uma pequena capela onde eu podia rezar. Neste tempo, minha oração era de muito silencio. Aquele lugar silencioso me dava muita paz.
Aos poucos fui ganhando confiança das irmãs, e me levavam para limpar a Igreja. Era um grande privilégio, e meu coração louvava a Deus pai por isso.
Com o passar do tempo também fui encarregada de bater o sino da igreja nas horas do ângelus. Foi uma grande honra chamar os cristãos a oração. Depois de 06 meses comecei a estudar por conta própria. No final do ano fiz o exame de admissão e comecei a cursar o ginásio.
Esta conquista me trouxe desafios: Inserir-me em um grupo maior, sem ter a presença dos pais. Minha roupa era pobre, também o calçado e os colegas riam de mim, me desprezavam e me faziam chorar. Aos poucos, fui conquistando meus espaços. Os meninos descobriram que tinha habilidades para escrever e pediam-me para escrever cartas para suas namoradas. O custo era o dinheiro para o lanche. Foi a primeira remuneração que recebi e que me permitiu por primeira vez saborear um sanduíche. Delicia!
Com o passar do tempo, as irmãs me ofereceram a possibilidade de ser aspirante do Movimento Mariano, mas como não tinha o vestido branco, comecei a fazer economias do meu lanche. Consegui comprar um tecido branco e confeccionar o vestido. Agora era considerada já a filha de Maria.
Exultei de alegria e me senti orgulhosa, pois além da fita do distintivo Mariano, também adquiri uma medalha com corrente que consegui comprar.
Num domingo, a irmã nos levou para visitar Emília, uma pessoa especial. Ao vê-la presa ao seu leito, meu coração se encheu de compaixão, e me perguntei o que poderia fazer por ela? Como alegra-la? Logo nasceu, dentro de mim, a lembrança do ensinamento de meu pai de ajudar os necessitados: Para o pobre se dá o melhor, porque nele vive Jesus!
O que possuo de mais caro e mais bonito, me perguntei. Logo nasceu a resposta: A corrente com a medalha de Nossa Senhora das Graças... Sim, esta era meu bem maior e único que eu possuía. Pensei. Considerei. Relutei... O convite interior permaneceu. Sim, eu devia presentear-lhe, com alegria, o único bem que possuía... Rezei, beijei a medalha e fiz um pacotinho de presente e aguardei a oportunidade. A oferta, para ser agradável, deve ser feita em segredo, só aos olhos de Deus...
Chegou o dia de fazer a faxina na Igreja. Essa era a oportunidade. Fiz tudo rapidamente, e segui o caminho que me levava até a casa de Emília. Entreguei-lhe a caixinha, e tomando a medalha a coloquei em seu pescoço. Nunca vi um sorriso tão belo de agradecimento...
Na minha vida escolar tinha boas notas em português, principalmente em redação, eu fui contemplada com a medalha de honra ao mérito que nunca recebi, por não ter o uniforme do colégio...
Este foi um bom tempo em minha vida, pois nunca conhecera nada melhor!
MEUS 15 ANOS...
Tu és meu Deus, que me cerca de Amor e de cuidado. Fiz 15 anos. Uma amiga do colégio das irmãs Vicentinas me convidou para irmos à cidade de Ponta Grossa, a 200 km de distância. Ela pretendia ser religiosa desta congregação religiosa. Fui a sua companhia, para conhecer a Congregação. Quando chegamos, notei uma grande diferença na acolhida, na acomodação e na forma de tratamento.
Sim eu deveria trabalhar na instituição, mas também poderia continuar meus estudos e logo ganhei uniforme. Tínhamos pequenas refeições e recebemos educação básica, e tínhamos horas para estudar e livros de vidas de santo para ler.
Adorei. Podia ler a vida dos Santos e rezar na capela do colégio. Encontrei também um grupo de moças que pensavam em ser religiosas. Observei que eram moças bem comportadas e educadas. Todo o cuidado era pouco para seus pais. Senti-me, diante delas, grosseira e mal educada, não sabendo comporta-me e sem ter alguém cuidado por mim. Elas se pareciam flores do jardim bem cuidadas, e eu como flor à beira do caminho, empoeirada, pequena e sem importância. Neste momento decidi ser freira.
Entre as próprias meninas, consegui um enxoval: roupas de cama, toalhas de banho e rosto, e roupas pessoais. Pedi à Madre para me admitir. Não se mostrou otimista, mas também não me barrou. Fomos. Chegamos à nova comunidade, onde devíamos ficar por alguns anos. A recepção não foi muito gentil, pois tínhamos roupas muito curtas e pouco decentes. Enfim éramos candidatas e logo dentro de poucos dias receberíamos um uniforme próprio.
A casa era muito grande, com acomodação de, mais ou menos 250 irmãs. Tinha muito trabalho: lavar roupas, louça, panelas, calçadas, cuidar do jardim, etc. Estávamos em cinco candidatas, e o trabalho foi dividido entre nós, com duas irmãs em cada tarefa, para nos orientar. Havia uma capela grande, com três momentos comunitários de oração, missa, adoração do Santíssimo e oração pessoal.
O dia deveria ser vivido em silencio. Nas refeições, alguém fazia uma leitura espiritual em voz alta. No inicio achei o máximo! Duas coisas me completavam: a adoração ao Santíssimo, e a oração pessoal.
Logo tive acesso a leituras espirituais que muito me realizavam. A adoração ao Santíssimo era meu ponto forte. Na permanência nessa casa começamos a aprender as normas e as regras do Instituto, bem como a fazer um trabalho de conhecimento pessoal. Ao olhar para dentro de mim, percebi um mundo de coisas fora de lugar. Comecei aos nomear meus sentimentos: Quantos? Parecia não ter mais fim: Revolta, angustia, tristeza, indignidade, vazio, solidão, ansiedade, etc. etc... Um rosário infindo. Supliquei ao Senhor para me ajudar e organizar a desordem que existia dentro de mim. Cai na conta dos meus desequilíbrios, e nem sabia por onde começar arrumar minha casa interior. A irmã que nos acompanhava não mostrava nenhuma capacitação para isto.
Lia. Encantei-me com o livro do Cântico dos cânticos. Sentia-me bem amada pelo Senhor. Como havia um jardim de lírios, era ali que gastava meu tempo livre, e me deixava amar por Ele. Lá vivi minhas tardes, acolhia a noite e deixava o jardim com coração dolorido para adormecer, nos braços longos e fortes do meu Senhor.
No mês de Julho, a casa ficou cheia e todas devíamos fazer um retiro. Eram oito dias de longas pregações feitos por um Frei Capuchinho que nos apresentou o caminho de santidade proposto por S. Teresa de Ávila. Encantei-me! Mas, como me sentia a pior criatura da face da terra, não me sentia convidada.
O frei enfatizou a importância da oração pessoal. Ele também a cultivava, e as três da manha lá estava ele, de joelhos, em frente do altar, imóvel como uma estatua, entregue ao Senhor. Isso também me encantou e fortaleceu. Este era um dos caminhos que Deus escolherá para me santificar. Isto era possível, mesmo diante de todos os meus tormentos. Pedi para conversar com ele, buscando uma orientação de vida.
Ovelhinha do Senhor, disse-me o frei. Preocupe-se mais em olhar para Deus, para a Eucaristia e viva a presença amorosa de Deus em você. Talvez o Senhor a queira fazer santa, mas isto é graça, não depende de nós. Cabe a nós buscá-lo, servi-lo e amá-lo. Dou-te estes livros para ler... No final do retiro, volte para conversar comigo. Ao ler os textos que falavam do grande amor de Deus com figuras de linguagem tão bela jamais os deixei. Ao longo de minha vida foram consolo, refugio e remédios para minhas dores, e a certeza de um amor incansável e infindável que me permitira olhar para minha historia como alguém muito amada por Deus. Meu coração se encheu de jubilo “Deus me amou sempre”, sempre esteve comigo! E mesmo agora, que olhava para minhas feridas adquiridas ao longo da caminhada. Deus Pai me prometia cura libertação! Entre as dores surgia uma canção de amor! Deus me ama! Deus nos ama! Os lírios ficam ainda mais brancos e perfumados. As rosas mais coloridas e cheirosas, os cravos mais delicados e belos! O céu mais azul. Tudo cantava em afoita! Deus é amor! Deus é amor! O retiro chegava ao fim e retornei para encontrar-me com o frei. Ele olhou-me demoradamente e me disse: És especial para o Senhor. Reze muito, sirva os pobres e tenha sempre um coração agradecido. Deixo, como tarefa, ler toda a Escritura, e copiar em um caderno as frases que falam sobre o amor de Deus para com sua criatura. Selecione os que mais gostar, e os leia durante o dia ou em viagens. Se entenderes o amor de Deus serás feliz. Sirva os pobres... E abençoando-me, despediu-se. Encontrei-o mais seis vezes. Deus é amor; ame-o de todo seu coração.
Findou o retiro agora tinha um longo caminho aberto a minha frente. Andar no caminho do amor de Deus, ler toda a S. Escritura, e anotar os textos que me falassem do amor de Deus. O tempo era pouco para tão árdua e saborosa tarefa!
Em um ano o caderno estava pronto e uma vida inteira para saboreá-la. Os dias passavam rápido. Os meses, os anos... Estava, há cinco anos nesta, casa religiosa inserida em trabalhos pastorais, além de minhas possibilidades e chegara a hora crucial. Deveria decidir entre permanecer na entidade ou deixá-la. Havia duas possibilidades: Por um lado, tudo o que ela podia me oferecer naquele momento: trabalho e casa para morar. Por outro, poder escolher onde queria servir o Senhor e em quê? O peso maior era minha personalidade ferida... E um mar de perguntas vinha: Amar pessoas com os quais você vai conviver e as respeitar? Controlar minhas angustias e meus vazios? E a minha solidão, meus impulsos, minhas revoltas?... A única certeza que tinha era o amor incondicional do Senhor.
Optei por deixar o Instituto. Encontrei, logo, trabalho em uma associação que assistia às mães mais pobres. Engajei-me ai por satisfazer um anseio e uma necessidade. Trabalhar e ajudar os mais desfavorecidos e satisfazer a necessidade de sobrevivência.
Era um momento que gozava de certa tranquilidade. Aconteceu ai um fato novo: meu irmão me procurou. Ele nunca havia me perdido de vista, através de um sacerdote que tinha ligação com o Instituto. Chegou uma carta, um pedido de ajuda. Haviam se passado oito anos sem noticias e sem encontrar com ninguém de minha família. Senti um pouco de medo, curiosidade, saudade e nem sei mais o quê. Fui à casa de meus pais. Ainda hoje não consigo ter claro o vivido então. Lembro-me que o pai me disse que não me conhecia, e que se eu não me retirasse, me mataria. Que eu não era sua filha e que nada de mim lhe interessava. Discutimos. Finalmente lhe disse o motivo que havia me trazido ali: levar embora minhas duas irmãs ainda menores, e que as levaria a qualquer custo. Meu pai me intimidou, amaldiçoou, mas consegui fugir com as meninas. Lembro-me de ter visto rapidamente mamãe chorando, desorientada. Não vi meu irmãozinho menor...
Fui até um advogado que me orientou como proceder. Entreguei as meninas em casas das Irmãs, e desde então cada uma assumiu sua vida. Obrigado, Senhor, por sempre me socorrer e lutar por mim.
Este encontro foi muito pesado e uma marca amarga em minha vida. Carregava muitos temores; o maior deles era que meu pai matasse meus irmãos. Nada mais podia eu fazer.
Depois de algum tempo, minhas irmãs assumiram seus trabalhos e cuidaram de si mesmas. Prosseguiram trabalhando e administrando suas vidas. Minha vida estava ancorada em Deus Pai e buscava servi-lo, onde intuía ser sua vontade. Buscando estar sempre ao lado dos mais empobrecidos.
Passou o tempo e os anos e o meu sonho continuava no meu peito: SER TODA DE DEUS PAI. Por ele viver, e por ele morrer.
MEUS 21 ANOS DE IDADE...
Aos 21 anos de idade ingressei em um grupo de estudos da Realidade Brasileira, a convite de um amigo. Era um grupo de 12 pessoas de diversas confissões religiosas. O horizonte que nos unia era a busca de um anova sociedade, onde as pessoas pudessem ser livres no pensar e no governar. Naquele momento, nosso país passava pelo regime militar que tudo oprime e reprime. Grupos clandestinos buscavam alternativas, novas ideologias. Nosso grupo buscava um modelo novo de governo. Encontrávamo-nos na calada da noite, para traçar metas e encontrar estratégias de ação. Passávamos por um momento difícil, e manter esta postura era muito perigoso, pois alguém nos poderia denunciar ao sistema de segurança do governo.
Tenho 21 anos , e me sinto um tanto ingênua, idealista e pronta para lutar ao lado dos demais. Frequentemente chegavam noticias de que alguém fora preso e torturado, ou tinha desaparecido... Dentro do grupo se guardava muita descrição sobre a vida do outro; uma forma de proteção. Fiquei muito ligada ao líder do grupo e procurei caminhar muito ao seu lado. Conhecia seus sentimentos, suas dores em consequência da sua militância. Tinha passado por torturas e ameaças de morte... Estávamos em um grupo de estudos, com religiosos e religiosas. Num intervalo, Paulo me diz que a segurança externa do governo está para nos prender. Ele espera que isso não aconteça.
Continuamos nosso estudo até o final da tarde. Os participantes deixaram o local e nos da militância permanecemos. Ao cair da noite, nos prenderam e fomos levados, separados, para diferentes lugares. Estávamos presos. Esta foi uma das mais longas noites de minha vida. A noite dos infernos, entregue a todo tipo de humilhação, e espezinhamentos de toda natureza. Tudo o que se possa imaginar, e ainda mais... No romper do dia fui abandonada em uma estrada deserta. Estava mais morta que viva, ferida no corpo e na alma. Devagar tentei andar... Era difícil, pois sentia muitas dores e tontura, mal estar generalizado incapaz de pensar. Sabia que deveria buscar uma saída... foi quando veio um carro dirigido por um senhor e me perguntou se queria socorro. Respondi que sim. Ele me perguntou o que havia acontecido. Relatei o possível... Ele me respondeu que a situação era muito perigosa... Perguntou-me se eu queria ir até o hospital. Não respondi, pois sentia um medo terrível.
Voltei para o quarto onde morava e lá permaneci, por três dias, voltando sempre ao nosso ponto de encontro, onde os “rebeldes” nos encontrávamos. Era um barzinho, na praça, aonde poucas pessoas iam, pela baixa qualidade do atendimento. Finalizada a reunião, disfarçada e rápida como ave noturna me retirava para meu quarto. A situação foi se tornando insuportável. A Segurança Nacional aparecia por lá em diferentes momentos do dia e da noite. Devia desaparecer por algum tempo. Consegui, disfarçada, fugir durante a noite. Cheguei até um mosteiro das Irmãs Beneditinas, ate o momento o lugar mais seguro, pois eram consideradas inofensivas. Pedi para ficar no eremitério, num quarto equipado com o necessário para viver.
Uma grande pergunta se levantava dentro de mim: Que mal eu fiz? Que mal fizeram meus amigos para serem banidos da face da terra. E a mais dura pergunta. Porque não morri como eles? Porque me pouparam? Não fui digna de compartilhar de essa sorte? Instalou-se dentro de mim uma terrível culpa, por estar viva. Rezava diante do sacrário pedindo socorro do alto. Saudade, dor, solidão, confusão, sentimento de indignidade, desorientação. As noites foram longas, mal dormidas e cheias de pesadelos, lembranças daquelas terríveis noites nas mãos dos soldados, palavrões, toques, choque, desrespeito total e absurdo a pessoa humana... Um inferno. Meu Deus! é difícil crer que um ser da mesma espécie, tenha tanta força para fazer o mal aos seus semelhantes. E tinha uma dor pior: O que aconteceu aos meus colegas? Foram mortos? A quem perguntar? Onde buscar informações... Neste momento nada era possível. Caia no vazio de minhas próprias perguntas. O recosido de minha vontade de nada saber! Isso seria a cicatriz incurável; uma terrível e inquietante dor.
Cansada e desgostosa, deixava meu corpo cair sobre a cama, para me açoitar pelas terríveis lembranças, palavras gestos empurrões e tudo o que se movia dentro de mim, como um vulcão em erupção. Retornava aos textos de Jó, Isaías Ezequiel, Cântico dos cânticos que falavam sobre o amor de Deus. Era a única realidade que não fora abalada dentro de mim. E como uma mendiga peregrina me encolhia dentro de minhas dores em um momento em que tudo se calava. E refletia para mim mesmo: Deus, Deus, só Deus... Meu coração, meu corpo, minha alma doíam em Deus. O amor de Deus suportava toda a minha dor. Só em Deus encontrava sentido, mas não explicação...
Tudo se calava sem deixar de existir. Participava das orações das horas, Salmos cantados, rezando a Palavra de Deus e a dos Santos Padres. Isso me revestia de uma doída consolação.
A bondade das irmãs me admirava: davam-me comida e me convidavam para a oração... Era bom, mas não podia ficar a vida toda lá visto que não seria uma como elas. Devia partir.
Sem amigos, desconfiando de todos, busquei um irmão religioso em quem confiava. E perguntei o que ele achava prudente nesta situação? Fuja, some deste lugar! Foi a resposta. Mas, não era isso que eu queria. Como abandonar a causa, o grupo? Sentia-me traidora, e me perguntava o que diriam as pessoas desaparecidas do meu grupo? E a lembrança de algumas orientações do nosso líder: Nunca lutar sozinha! Se fugir, é para continuar lutando... Sim, era o melhor que eu poderia fazer.
A dor das perdas me machucava e não me deixava em paz... Algo dentro de mim me perseguia. Fui para outra cidade, e busquei trabalho. Fiz um concurso e me estabeleci. Cai em depressão! Uma depressão existencial, pois desejava nunca ter existido. Sentia-me desprezada por todos, e incapaz de ser amada. Isolava-me das pessoas, pois não me achava digna de sua atenção nem de seu amor. Qualquer pessoa que se aproximava de mim me causava dor. Sentia-me a pior de todas as criaturas. Com tudo, continuava lendo a Sagrada Escritura e frequentando os sacramentos. Só em Deus encontrava forças.
Aos poucos fui saindo do meu ensemismamento. Fui convidada para dar catequese, voltar para servir às pessoas e a Deus. Melhorei. Sinto-me mais purificada pelo sofrimento. Fui convidada, por um grupo de moças e rapazes, a trabalhar com mulheres exploradas sexualmente, e velhinhos desamparados. Aceitei o desafio, e deixei meu trabalho. Foi uma benção de Deus.
Neste trabalho tive contato com outra realidade de pobreza e exploração. Recebíamos, em uma casa de apoio, meninas gravidas vindas do interior para trabalhar em casas de família. Engravidadas por seus patrões ou filhos dos mesmos. Quando os patrões descobriam, as colocavam na rua. Cuidava também das pessoas idosas doentes, trocando fraldas, dando banho e alimentando-os. Vivíamos neste momento a alegria Franciscana. O grupo era de franciscanos leigos, e como dizia o coordenador: Amar aqueles que ninguém ama!
Era esta a palavra motivadora. Percebia, porem, meu interior ainda muito desordenado, e com uma sensibilidade petrificada. Este grupo de vivencia motivava um trabalho interior.
Cresci, mas as perguntas me perseguem. Vivo com muito amor este momento de minha vida; paciência e caridade com idosos, escutar suas longas historias, normalmente de muito sofrimento, mães solteiras com seus bebes... Por vezes, sentimentos de muita solidão e sensação de desamor. À noite cursei meu segundo grau.
MEUS 30 ANOS: UMA NOVA TERRA...
Neste mesmo ano busquei outro trabalho. Sou contratada para trabalhar como agente social em uma favela. Trabalho tranquilo; estou com boa saúde, mas com um olhar atento ao meu interior. Conversei com uma irmã Religiosa sobre o que sentia. Fiz uma oficina de oração, e adotei o costume de fazer um dia de oração por mês. Foi um momento fértil de minha vida espiritualidade. Fazia um dia de deserto com jejum, e me retirava para uma chácara a rezar, e lá permanecia o dia todo. Mais tarde, tive a oportunidade de fazer um retiro de oito dias, em silencio, e comecei a entender as minhas dificuldades pessoais. Na minha vida abriu-se um novo horizonte, e me senti chamada a uma maior intensidade na oração. Amo a natureza como criação de Deus; neste lugar existem dois lagos, e gosto de sentar-me próximos a eles, para contemplar suas placidez e me harmonizar. Sentia-me convidada a ser para outros assim, um lugar de vida tranquila e transparente.
Crescia fortemente de mim o desejo de servir de vivenciar uma entrega mais profunda a Deus e um anseio de liberdade. Neste trabalho fiquei por um ano. Dentro de mim, aflora um desejo incontido de melhorar como pessoa, pois tenho a percepção nítida dos meus desiquilíbrios. Vivencio a petrificação de minha sensibilidade, e a minha intensa incapacidade de me comunicar através do abraço ou de qualquer expressão afetiva. Isto me faz sofrer. Busco ajuda e encontro um trabalho de autoanalise, grupos para trabalhar seu interior e perceber onde esta a desarmonia mais forte e as reações mais desproporcionadas. Vejo que os outros também têm suas dificuldades, mas as minhas sobressaem.
Decido me trabalhar e prestar atenção ao que era solido e vinha do meu melhor, e o que eram carências e negatividades. Fiz por um tempo uso deste método que muito me ajudou. Engajo-me na pastoral operaria, onde encontro um grupo de apoio que me encanta pelo que promovem. É um novo tempo.
AOS 32 ANOS: UMA NOVA LAVOURA...
Fiz 32 anos; sou professora primaria e estou vivendo com os mais pobres. Percebo um movimento interior que me torna amargo este viver. O que será?
Estabeleci-me entre eles. Começam uma oferta à algumas famílias para sair do lugar onde habitam e recomeçar em outro lugar, com melhores condições de moradia. A nova localidade, muito distante da cidade, e com pouco serviço de transporte, ainda sem luz elétrica e agua encanada. O país passa por um momento de desemprego generalizado. Há muita carência de tudo, e às vezes não temos o que comer. Eu observava o movimento interior que esta situação de pobreza provocava em mim e nas demais pessoas. Eu me sentia muito contrariada com um governo que não da possibilidade de sobrevivência aos seus habitantes. Enquanto os outros moradores enfrentavam com coragem e alegria esta situação, de vez em quanto alguém fazia uma generosa ação e supria, por um tempo, nossas dificuldades. A forma como viviam a doença também era diferente. Quando adoeci poucas pessoas vieram para me ajudar. Fiquei na cama, sem poder levantar-me por muitos dias; as refeições chegavam sempre no fim da tarde. Lembro, com o coração agradecido e emocionado, que vinha uma senhora idosa, a distancia de um quilometro, me trazer um pequeno caldeirãozinho de sopa. Era tempo de frias neblinas, e lá estava ela todos os dias! Chegava bem disposta, apesar do frio, e empurrava a porta que ficava sempre sem chave e dizia: Como vai a doente? Eu morava sozinha e dependia da caridade dos outros. Isto era um momento de alegria, e dentro de mim brotava uma gratidão imensa, por aquela velhinha que me visitava. Na pessoa dela, o Senhor me visitava e reconfortava. Experiência de Deus, apesar das dores e febre alta. A velhinha me perguntava se me faltava algo que ela pudesse remediar. O que dizer? Despedia-se prometendo voltar novamente no fim da tarde do próximo dia, e assim acontecia. Deus me amava através dela, e expressava sua ternura de cuidador.
Aos pouco recuperei a saúde e pude voltar às atividades. Procurei cuidar do meu interior, rezar, ir ao mosteiro, ler a Sagrada Escritura e estar atento à sua graça. Neste lugar, onde tudo parecia ser difícil, nas reuniões com os moradores Deus sempre nos presenteava com algo novo. Aos poucos, fomos nos organizando para rezar e melhorar a vida de todos. Conseguimos construir um lugar para rezar e tratar de outras necessidades da comunidade. Conseguiu-se formar uma cooperativa de costura para as mulheres trabalharem e assim ajudar no orçamento familiar. Mais tarde, com diversos mutirões, conseguimos construir uma pequena capela. Tudo acontecia com muita luta e empenho dos moradores com diferentes níveis de comprometimento e empenho. Todos faziam o possível, e organizamos até a Pastoral Operaria, participamos das greves para reivindicar melhores condições de trabalho. Neste momento o país começava a sair do regime de governo militar, e buscava a democracia. A situação era difícil porem mais aberta do que naqueles anos tenebrosos.
Quando fazíamos greve éramos vigiados pelos militares que, com muita facilidade, nos reprimiam e dispersavam. Diversas vezes fomos até o Palácio do Governo, com nossas reivindicações, escoltados por militares de ambos os lados armados de fuzis e metralhadoras. Eles formavam paredões de ambos os lados. Era comum a ação violenta dos mesmos. O que mais me chamava atenção era a fé do povo simples que calados em seus sofrimentos bendiziam com a alegria a presença amorosa de Deus em suas vidas. É verdade que, muitas vezes, por atribuir tudo a vontade de Deus, mesmo as coisas menores, pouco conseguíamos fazer. Permaneci neste lugar por 10 anos. Durante este tempo caminhei humana e espiritualmente, integrei muitos sofrimentos do passado com a autoanalise.
No final de minha permanência algo muito particular aconteceu: o reencontro com minha família. Por ocasião da morte de meu pai, fui procurada por minha irmã dizendo que meu pai estava muito doente, e que elas não poderiam cuidá-lo. Desloquei-me para ajuda-lo, e ver o que seria possível. Quando lá cheguei, encontrei meu pai só, em uma casa velha da cidade. Estava realmente muito doente, e muito revoltado com a doença, debilitado e nervoso, com um mal estar muito grande. E muito mal cuidado. Providenciei para mim um colchão e algumas cobertas e dormia na mesma casa. À noite, quando ele se sentia muito mal, levantava-me e lhe preparava um chá que o aliviava. Como havia trabalhado em asilo tinha uma boa noção de como cuidar de uma pessoa neste estado. Preparava-lhe as refeições e passei a acompanhá-lo nos exames. Logo percebi que a doença era grave; meu coração compadeceu se deste homem... Homem rude, violento e que agora estava ali prostrado pelo sofrimento. Lembrei do vivido anteriormente com ele, e como Deus Pai tinha atuado em nossas vidas. Agora, fazia um caminho silencioso de reconciliação; eu não era mais a frágil e desamparada menina. A vida me tornara capaz de gerenciar minha vida. Veio-me a lembrança dos sofrimentos vividos na adolescência, do abandono na rua... Em meu coração não havia mais rancor; parecia como se as distancias do tempo tivessem sido anuladas. Jamais imaginei cuidar de meu pai no fim de seus dias.
A doença foi terrível e em menos de 30 dias meu pai morreu. Com a morte dele, a família se reencontrou. Vejo Deus Pai trabalhando em nossas vidas com a reconciliação experimentada. Durante sua hospitalização estive quase todo o tempo presente, auxiliando-o nos cuidados que se fazem a um doente terminal: higiene, alimentação, cuidado com as sondas, vomito, etc. À noite vigiava para que não lhe faltasse nada. Rezava quando possível com ele, com os irmãos, e também por ele. Por fim, ele morreu, após receber os sacramentos próprios deste momento. A doença de meu pai durou o tempo suficiente para acontecer nosso processo de reconciliação. No momento da morte de meu pai, não estive presente, mas meus dois irmãos que lá estavam me disseram que foi tranquila. Foi-se uma vida cheia de muitas contradições visíveis!
Após este período, retornei ao meu trabalho que não apresentou grandes novidades. Estava feliz e alegre por estar ali, com aquelas pessoas simples. A vida era cheia de privações, dificuldades e sofrimentos. Sofrimento dos pobres, pela falta de todo tipo de recursos... Mas o rosto de Deus tudo iluminava, e na trama do cotidiano se podia ver Deus. Permaneci nesta comunidade, até o ano de 1992. No inicio de 1993 deixei esse trabalho.
AOS 43 ANOS DEUS PAI SORRIU EM MIM...
Estou com 43 anos, fiz alguns retiros inacianos em um centro de espiritualidade. E me preparei para fazer os exercícios de 30 dias de Santo Inácio de Loyola, embora o meu vivido interior era de muita culpa infundada. Sentimentos psicológicos com diversos conteúdos: por ter nascido, por ser mulher, por fazer minha mãe sofrer, por ser considerada subversiva, pelos meus colegas terem morrido e eu não. Estava muito viva, dentro de mim, a rejeição de meu pai. Quando nasci, meu pai esperava um menino e quando soube que era menina, abandonou a casa só retornando mais tarde com a insistência dos amigos. Sendo eu a segunda filha, não fui esperada e nem desejada. Sou consequência da satisfação de impulsos sexuais. Meu pai desde que, me lembro, nunca me quis; sempre me tratou mal e me designava como um estorvo. Para piorar a situação, depois de mim veio um menino que nasceu prematuro e faleceu. Meu pai me repetia: você que não presta esta viva, e quem devia viver morreu. Você é uma inútil uma amaldiçoada e não serve para nada... Isso ouvi muitas vezes.
Mas, Deus estava em minha vida, na contra mão: quanto mais ouvia os insultos mais Deus pai resplandecia em minha vida. Compreendo o que vivia ele. O que tinha se não fraquezas? No entanto com todas estas e outras debilidades Deus resplandecia em mim e me colocava a serviço dos seus pobres. Isto não me pesa e enche minha vida de leveza e alegria, mas nunca dispensou de trabalhar minhas dores e feridas... Neste contexto de vida, sou convidada a estar a serviço de uma Congregação Religiosa em um lugar de missão, entre os pobres. Lá fui eu com os cortadores de cana, plantadores e colhedores de café em áreas violentas e de latifúndios. As pessoas são escravas do sistema e trabalham como boias frias, por um salario mínimo fictício, sem nenhuma segurança ou amparo legal. É um monopólio e as pessoas não encontram a quem recorrer. Tudo fica nas mãos dos grandes proprietários. Os trabalhadores sobrevivem com o mínimo de alimentação e sem assistência médica. A escola local fica vazia, quando chega à colheita do café, pois toda a família vai para o cafezal. É a única oportunidade de conseguir um pouco de dinheiro para comprar roupas e calçados. Saem as 04h00 da manhã e retornam às 21h00. E assim todos os dias!... É uma jornada dura, não tendo possibilidades de se organizarem para alguma reivindicação. Nesta pequena vila há apenas um pequeno posto de saúde, onde raramente aparece o médico. O supermercado é dos próprios latifundiários. Nenhuma opção de lazer. Tudo é muito precário: não há agua, pois é trazida por um caminhão pipa de outra localidade, e as mulheres nos domingo vão em um pequeno riacho a 3 km para lavarem a roupa. Neste contexto, as freiras lá chegaram, para estar com estas pessoas. Um pequeno grupo com muitos limites, inclusive de idade. Entre elas, também eu.
Traçamos pequenas metas para ir descobrindo, com este povo, qual seria o caminho, e o que fazer. As necessidades eram gritantes: pessoas doentes, abandonadas nos casebres das fazendas... Faltava quase tudo: Educação, escola, religião, saúde, cidadania, etc... Inicialmente assumimos a catequese e os doentes. Tentamos negociar com as autoridades; tudo era muito lento, trabalhoso e quase sem nenhum interesse do poder publico por estas pessoas. Eu visitava os doentes e fazia levantamento das necessidades. Ia a pé pelas fazendas sob um sol escaldante: muita poeira, pouca agua para fazer a higiene, curar as feridas e encaminhar para as consultas médicas à distancia de 150 a 200 km. Conseguimos que a cada 15 dias os doentes fossem levados para esta consulta. Os doentes graves levávamos para outro Estado, a 300 km. Conseguimos, com muita luta, uma ambulância. As pessoas ficavam na fila das ambulâncias de 07 a 10 dias! Um Escândalo! Se não entrassem em óbito, seriam atendidos. Também eu adoeci e fiquei muito mal achando que morreria. Viajamos uns 700 km na ambulância, e tinha de companhia uma moça que se dispôs acompanhar-me. Passei muito mal, tendo numa mão o crucificado e na outra o terço. Finalmente cheguei, onde poderiam me socorrer. Estava com hemorragia. A médica fez o diagnostico e informou que teria que fazer uma intervenção cirúrgica emergencial, mas que devido meu estado de fraqueza e perda de sangue não sobreviveria. Fui hospitalizada. Não morri; depois de três meses retornei ao trabalho. Foi um período sofrido, mas de muito aprendizado entre os pobres e confirmação na fé. O desvalido tem seus olhos fixos em Deus, pois não tem onde se apoiar ou buscar forças. Deus Pai e seus Santos são sua única esperança.
Na minha autoanálise encontrava sempre mais desordem, pecado, feridas e dores. Foram anos de ordenação e purificação interior. Era a sábia pedagogia de Deus.
Fiz os exercícios de 30 dias nos quais pude rever minha vida e saborear com intensidade a misericórdia e a ternura de Deus. Entendi como fizera muitas coisas sem discernimento. Pude acolher do Senhor algumas palavras interiores que se fizeram minha consigna. Não retire de mim seu olhar para que não me perca... Procurei guardar e vivenciar estas palavras.
Enquanto prestava esse trabalho fui novamente chamada por meus irmãos. Minha mãe não estava bem, e os serviços médicos prestados na cidade onde morava eram insuficiente. Tínhamos que buscar recursos mais eficientes. Combinamos e levamos minha mãe para a capital, e lá foi internada com muitas dores. Devia submeter-se a uma cirurgia de risco e meus irmãos não podiam permanecer no hospital, como era exigência do mesmo. O Senhor de todas as bênçãos presenteava-me novamente. Mamãe sofreu muito. Foram 40 dias de sofrimento; permaneci durante este tempo ao seu lado, dia e noite ora sentada em uma cadeira e à noite encostada em uma poltrona. Era o mês de junho e fazia muito frio.
Um dia, ao meio dia, a alimentei e cansada sentei-me em sua frente; tomei suas mãos entre as minhas, para aquecê-las, mas cochilei. Pedi a Deus e a Nossa Senhora que a levassem, pois não aguentava mais vê-la sofrer. Mamãe me chamou, e percebi que estava morrendo. Ela morreu em meus braços. Senti uma dor como nunca em meu coração. Assim findava mais uma vida sofrida, porem digna. Eu estava só; meus irmãos estavam a 300 km. Como era domingo, providenciei roupa e o serviço da funerária para viajar na noite, durante cinco horas, levando o corpo de minha mãe. Foi uma experiência sofrida e de extrema solidão. Fiquei mais 10 dias com meus irmãos e retomei minhas atividades junto às freiras, nas Missões.
30 dias depois, minha vida deu uma reviravolta de 180º, fui para Belo Horizonte fazer Bacharelado em Teologia. Inicialmente fiz algumas matérias de Filosofia que eram requisitos para fazer o curso de Teologia. Recebi ajuda e apoio de um Bispo que custeava minhas despesas. Foi a primeira vez e única na minha vida em que recebi um amparo que me era suficiente Podia dedicar-me com tranquilidade aos estudos.
Foi um céu, ter pão, casa, dinheiro para as despesas pessoais e estudo. Tinha tranquilidade para rezar, e minha alma estava serena e cheia de gratidão a Deus. Tinha também um acompanhamento espiritual; tudo era muito bom. Foi como repousar nos braços ternos de Deus. Finalizando os 2 anos, todo este amparo econômico me foi retirado. Era um novo tempo. Agora tinha que procurar emprego, moradia, pagar a faculdade, neste momento havia crescido em mim a confiança em Deus Pai providente e ali estava eu novamente desprovida de todos os recursos materiais. Precisava novamente pensar em como sobreviver. O tempo das vacas gordas havia passado. Estava mais descansada e isso me dava forças para empreender novos caminhos. Tinha as mãos estendidas para providenciar e meu olhar fixo em Jesus. Não demorou muito, para eu encontrar um lugar para morar. Consegui o suficiente para me alimentar. Vivi com simplicidade e perguntava a Deus sobre o meu caminho, e o que realmente queria de mim.
Tive um sábio orientador espiritual que me ajudou a ser fiel a Deus. Todos os dias, na oração, Deus curava minhas dores. Mas, quase sem perceber cai numa cilada: coloquei meu olhar numa pessoa. Logo se acenderam todas as minhas carências e investi nesta relação. Achei a pessoa muito especial e maravilhosa; vi-a como um Deus. Meus olhos tornaram se cegos, e meus sentimentos pularam desorganizados... Havia muitas coisas boas na relação, mas supervalorizei a pessoa tirando-a do lugar dos humanos. Fiz muito mal a mim e também a ele, e o que inicialmente era um céu findou no inferno da dor, sofrimento, solidão e tristeza. Aprendi muito.
Minha alma como ave escondida entre fendas de pedras, assim me sentia. Senti-me culpada, por este amor perdido. Meu orientador espiritual, paciente e de muita misericórdia, ouviu mais uma vez minhas lamúrias e tristezas. Foram os ouvidos humanos emprestados por Deus para sanar minha dor. Espiritualmente foi um momento de dor e de consolação: uma consolação dolorosa. Sai mais amadurecida, esclarecida, compreensiva e humana. Neste contexto é que conclui meu bacharelado em teologia. E, era necessário partir novamente.
Em um primeiro momento fiquei na terra onde nasci, mas como não consegui trabalho parti para outra cidade, onde fui trabalhar em um projeto de crianças em situação de rua. Busquei amá-los sinceramente cuidando de que os respeitassem sem preconceitos. Fiz o que pude, para garantir-lhes alimentação de boa qualidade, me eram tratados com comida estragada, rótulos vencidos, por serem pobres. Morava em um lugar pequeno e muito frio, entre ladrões. Esta experiência foi muito forte. Pessoas que roubavam os pobres, não pagando pelos seus trabalhos e ainda mais, os insultavam. Minha alma sentia-se perturbada e machucada. Aqui também tinha os Anjos da Misericórdia que me ajudavam inclusive com alimentação; eram pobres como eu, mas com alma de ouro e atentos às necessidades dos outros. Espiritualmente continuo me observando, pois minhas feridas não têm cura. Rezo e sinto que Deus Pai continua me amando. Assim, na misericórdia e na ternura do amor de Deus prossigo minha jornada...
Cristina (nome fictício). Cristina é uma mulher madura, solteira e católica praticante...