Inácio de Loyola: da Conversão para a Conversação...



Vivemos num mundo, onde a experiência e a palavra ocupam lugares privilegiados. Quem consegue expressar sua própria realidade e a realidade que o circunda não só consegue entender o acontecido, mas também, o consegue superar. A Bíblia nos diz que o homem, dando nome às criaturas, ficava senhor delas. Quem é capaz de dar nome às coisas ou acontecimentos possui uma segurança e um conhecimento maior do que aqueles que não o fazem.

Não é só em relação às coisas que a palavra ajuda a nos situar. A palavra é fundamental na inter-relação com os outros seres humanos. É pela palavra que nos revelamos ou nos escondemos. Expressar-se fielmente na verdade, não é fácil. Muitas pessoas não conseguem ultrapassar o nível mínimo de comunicação entre elas, usando o mínimo de expressões, para revelar o mínimo de si próprias. Vivem fechadas e não manifestam, por medos e bloqueios, nada de si mesmas. E assim passam a vida!

A comunicação entre pessoas se dá através de gestos e de palavras, que traduzem e concretizam uma possível prática ou teoria e leva ao crescimento dos inter-locutores. Não é fácil! A separação, quase infinita, que existe entre um "EU" e um "TU" só pode ser superada pelo gesto e pela palavra!

Há gestos que ficam incompreensíveis se não levam alguma palavra. E as palavras se tornam vazias, perdidas no espaço se não vão acompanhadas de algum gesto. A palavra viva e significativa é aquela que é original e se traduz em gesto concreto. Não foi assim quando o Verbo (a Palavra!) de Deus se fez carne humana?

Algumas pessoas ficam apenas nos gestos, imaginando que assim expressam tudo o que têm a dizer. Outros falam, sem gestos, e esquecem de se comprometer com o que dizem! Tanto uns como outros perdem o sentido sempre novo dos relacionamentos humanos!

É preciso correr o risco de se revelar e partilhar, com simplicidade e confiança, o mais fundo da existência. Quantas vezes as palavras se fazem pequenas, para poder dizer tudo aquilo que se quer expressar! E quantas vezes as palavras se fazem mentira, para ocultar aquilo que não se quer dizer! Em Inácio de Loyola, por pura graça, a sua palavra se transformou em transparência significante. Ele foi capaz de expressar o mistério mais profundo de si mesmo (sua própria pobreza ontológica e existencial!) na sua comunicação com Deus, e o mistério do Deus Absoluto (presente na sua própria pobreza!) na sua comunicação com os outros.

Conheço pessoas que, apesar dos anos percorridos, não têm nada a dizer. Podem até proferir muitas palavras, mas elas não expressam nada do fundo da vida. É como se não tivessem história! Certamente tem fatos e muitas outras coisas sucedidas, todas elas soltas e sem nenhum significado profundo, no processo da sua vida. É como se tivessem perdido o fio condutor, articulador de suas fases e ciclos vitais, sem dar-lhes unidade e sentido.

A verdadeira história depende do sentido que cada um decidiu dar à sua vida. Foi isso que aconteceu, inesperadamente, com Inácio de Loyola.

1. A experiência como origem de tudo. Inácio de Loyola fez, aos 30 anos de sua vida, uma experiência profunda e pessoal de encontro com Deus. Tudo o que até então vivenciara nos seus encontros e desencontros (aventuras, fatos, acontecimentos positivos e negativos) começa a ter outro significado. A experiência do Deus Absoluto o unifica interiormente e fará dele outro homem.

Mas, o que entendemos por "experiência"? "Experiência" é um conceito polissêmico. Não é a mesma coisa dizer: hoje, no laboratório, realizamos uma experiência com NaCl e H2O e hoje vivemos uma experiência muito intensa do amor de Deus? A primeira, diz respeito a tentativas e demonstrações que podem ser realizadas, a toda hora e mecanicamente, em laboratório, bastando ter um pouco de sal e água para poder realizar a eletrólise. Este tipo de experiência possui um caráter técnico-prático, mecânico e repetitivo.A segunda, não pode ser enquadrada nos limites estreitos de um laboratório, pois não pode ser demonstrada e verificada "cientificamente". Ela é gratuita e não pode ser provocada ao bel-prazer, pois envolve, também, a totalidade da pessoa que a experimenta. Este é o significado para entender a “experiência religiosa”.

Aprofundemos mais um pouco no conceito "ex-peri-ência". "EX": preposição que significa movimento para fora, sair de si... Daí algumas palavras: Ex-istência; êx-tase; ex-ortação; ex-aluno... etc. "PERI": prefixo que expressa movimento em torno de, em volta de... Daí palavras como: peri-metro; peri-dérmico; peri-polar; peri-scópio;... "ENCIA": (ci-ência), conhecimento profundo. Quando dizemos "ex-peri-ência" de Deus é tudo isso e um pouco mais que queremos expressar!

2. Experiência de Inácio na sua conversão. É no momento inefável da sua conversão, dessa experiência profunda e marcante do Amor absoluto que purifica e unifica interiormente, dando um novo sentido à sua história, que Inácio de Loyola, sente-se pobre e totalmente dependente, voltado radicalmente para Deus.

A "ex-peri-ência" de Inácio de Loyola foi um "sair de si próprio" e do seu pequeno mundo (EE 189), abrindo-se para o relacionamento e intimidade com Deus. É assim que aprenderá a se relacionar, mais tarde, com as outras pessoas, tentando descobrir nelas o mistério daquele primeiro encontro, o do Criador com a sua criatura e o da criatura com o seu Criador e Senhor.

Inácio, abrindo seus olhos para essa sua experiência interior, descobre no mais fundo de si, significados mais sensatos do que suas incoerências, transformando-o num mistagogo. Desta experiência relacionar e conversar também com todas as pessoas.

3. As conversas de Inácio. Inácio, como bom basco, nunca foi um conversador de palavra fácil. Por temperamento e por raça era homem de poucas palavras, embora conservasse aquela afabilidade aprendida na sua casa e no castelo de Arévalo, como pajem da rainha D. Germana de Foix.

Veja o decurso, lento e progressivo, da comunicação espiritual de Inácio:

Parece que o primeiro diálogo espiritual profundo e coerente que Inácio manteve foi quando decidiu confessar-se com um companheiro de armas, antes da batalha no castelo de Pamplona (maio de 1521). Inácio está com trinta anos de idade e, até então, sua vida tinha sido mundana, pois tinha "grande e vão desejo de ganhar honra" (Autob.1). O que ele revelou àquele companheiro de armas, só Deus o sabe, mas não há dúvida de que Inácio começa a compartilhar com alguém seu mundo interior, tão cheio de zonas primárias e escuras.

Aos pouco, seu irmão Martin e os outros parentes da Casa-torre, vendo as mudanças exteriores de Inácio começam a se preocupar com o seu mundo interior. Por diversas vezes o questionaram, tentando afastá-lo dos seus sonhos e novos projetos, pois "o tempo que gastava com os de sua casa era conversando sobre as coisas de Deus" (Autob. 11). E isto lhe fazia bem!

Estas primeiras "conversas espirituais" de Inácio deveriam ser alguns comentários das leituras que vinha fazendo ou pequenas tentativas de defesa de seus novos ideais, diante dos ataques dos membros de sua família, pois não entendiam esse mundo novo que Inácio vinha descobrindo! E assim, percebendo que pouco adiantavam suas colocações "sem afastar-se da verdade, desembaraçou-se das insistências do irmão" (Autob. 12). Uma vida significativa sempre questiona e incomoda!

Na base de todas essas conversações de Inácio, está a grande conversação que ele mantém com Deus, desde aquele bendito dia da sua conversão. Deus apresentou-se a ele cheio de amor e misericórdia, e falava-lhe "como um amigo fala com o seu amigo" (EE 54). O seu Diário Espiritual revela como esse relacionamento com Deus mexia com sua sensibilidade: "lágrimas, inteligências espirituais, clareza, perda da voz, loqüela interior..." eram alguns dos sintomas.

Esse diálogo, uma vez iniciado, sempre foi "in crescendo". Inácio participa, como dom e graça, da perfeita intercomunicação existente na Trindade santa. Ele ora fala com o Filho, ora com o Pai, ora com a Santíssima Trindade... Sua oração converte-se, aos poucos, numa verdadeira conversação! Escutando Deus, Inácio aprenderá a ouvir as pessoas. Falando com Deus e os seus santos, ele aprenderá também o devido respeito e reverência que sempre devemos na escuta dos outros: "Todos tenham especial cuidado... quando falarem, na consideração e edificação de suas palavras... em tudo procurando e desejando dar vantagem aos outros, estimando-os na sua alma... tendo-lhes respeito e reverência". (Monumenta Ignatiana, c. 1, 342-344.).

A bala que destroçou a perna direita de Inácio fez com que pudesse também parar um pouco e entrar nessa outra fortaleza, tão grande e desconhecida, da sua interioridade.

Em Montserrat, etapa inicial de sua peregrinação, Inácio se abre com o beneditino João Cânones, numa conversa-confissão de três dias (Autob. 17). Não foi apenas uma confissão da sua vida passada, pois isso ele já fizera em Loyola, véspera de São Pedro e São Paulo, quando os médicos o informaram do seu estado de extrema gravidade. Esta conversação (mistura de confissão, conta de consciência e colóquio espiritual) marca o começo da sua conversação espiritual e que passará, posteriormente, a uma conversação apostólica.

Manresa é fase de grandes lutas interiores, escrúpulos e diversidade de moções dentro de si. Ele fica meio perdido neste reboliço todo e busca “alguns homens espirituais” que o ajudassem no seu discernimento. O curioso é que encontra poucas pessoas capazes dessas conversas espirituais e, entre elas, "uma mulher de idade avançada e também muito antiga serva de Deus"... (Autob. 21). Esta busca foi longa e intensa e até meio frustrante! Inácio acabará por dizer que "perdeu totalmente esta ânsia de buscar pessoas espirituais" (Autob. 37) que o ajudassem a entender o que nele acontecia.

Nesta época, sua conversação espiritual tinha como objetivo o proveito pessoal, mais tarde, percebendo que algumas pessoas "o vinham procurar, em assuntos espirituais (Autob. 26) e o fruto que fazia nas almas com o trato" (Autob. 29), decide tomar a iniciativa das conversas espirituais, que se transformarão, também, em conversações apostólicas.

Depois dessas experiências, "na sua primitiva Igreja" de Manresa, onde Inácio passou por obscuridades espirituais enormes, é que decide vestir-se de "peregrino" e partir para Jerusalém, a terra de Jesus.

Há a peregrinação tradicional, o viajar a pé, em oração e penitência, para um santuário, e aquela outra, "ao modo apostólico", viajando em pobreza e simplicidade, pedindo esmolas, ajudando os doentes e conversando com uns e outros pelo caminho, na mesa ou nas paradas que se fazem. Inácio dedicou vinte anos da sua existência a este outro tipo de peregrinação!

Daqueles desejos que tinha de encontrar pessoas espirituais para ser ajudado, passa a buscar o próximo para ajudá-lo com sua amizade e palavra. A partir deste momento, multiplicam-se os contatos espirituais em conversações e exercícios.

Quanto caminho em tão pouco tempo! Estamos apenas no fim do ano de 1522...

4. Os Exercícios Espirituais como conversação espiritual. A conversação espiritual foi uma experiência pessoal e inesquecível de Inácio. Ele vai nos propor, baseando-se nela, um caminho para ajudar os outros a realizarem também o seu próprio encontro com Deus e, em conseqüência, com os outros. Quem Deus encontrou, modifica para melhor a vida, fazendo-a parecida com a de Jesus!

Os Exercícios Espirituais (EE) são um manual, não para ser lido, mas praticado pelo exercitante. Inácio queria que os EE fossem um tipo de "conversação espiritual" do exercitante com Deus e do exercitante com o seu orientador, buscando qualidade de vida. Os EE são, pois, uma conversação, onde se propõe "modo e ordem para meditar ou contemplar" (EE 2). Eis a regra de ouro da conversação espiritual inaciana: conversar com as pessoas para levá-las ao diálogo direto com Deus ou conversar com Deus para agir com maior coerência e generosidade.

Três atividades diferentes do orientador, onde a conversação espiritual é o pressuposto e o fundamento desta relação:
Dar a ordem e o modo de meditar;
Explicar as instruções;
Ouvir o exercitante sobre suas moções espirituais e o seu modo de proceder.
Inácio coloca um pressuposto fundamental sem o qual o diálogo ou a conversação não é possível: "Para que, tanto o que dá os Exercícios como o que os recebe, se ajudem mutuamente e tirem maior proveito: deve-se pressupor que todo bom cristão está mais pronto a justificar uma proposição do próximo do que a condená-la. Se não pode justificá-la, pergunte como é que ele a entende; se a entende mal, corrija-o com amor; Se isto não basta, procure todos os meios convenientes para que a entenda bem e assim se salve (EE 22).
Não é suficiente "ouvir" o outro, é preciso "escutá-lo", acolhê-lo internamente na revelação de suas palavras. Inácio parece intuir que é impossível acolher Deus, se, primeiro, não somos capazes de acolher o outro.

5. Frutos da conversação espiritual: formar líderes sociais e comunitários. O primeiro grupo foi-se formando entre os anos de 1524 e 1527. São eles: Calixto de Sá, Lope de Cáceres, João de Arteaga e João Reynalde que se reuniam com Inácio para partilhar a experiência dos EE, pelo menos na sua primeira semana.

Todos eles mudaram de vida e se colocaram a serviço dos outros por meio das conversações espirituais. O público que atendiam era variado: estudantes e frades, homens casados e mulheres devotas, casadas, moças e algumas até de má vida. Este pequeno grupo de companheiros tinha mais zelo do que instrução e exercia seu apostolado no meio de gente muito simples. Estamos em novembro de 1526. Em junho de 1527, com a viagem de Inácio a Paris, este pequeno grupo se desfaz.

Chegando a Paris, Inácio "começou, mais intensamente do que costumava, a entregar-se a conversações espirituais" (Autob. 77). Ele estuda e dá os EE aos jovens Peralta (será pregador na diocese de Toledo), Castro (far-se á cartuxo em Valencia) e Amador (Autob. 78). O binômio conversações-Exercícios Espirituais será um meio excelente para formar pessoas que queiram se colocar a serviço dos outros na Igreja e na sociedade.

E assim aconteceu com os primeiros jesuítas, universitários da Sorbonne de Paris, Fabro, Xavier, Laynez, Salmerón e Bobadilla e com todos os que os seguiram, jesuítas e leigos, nestes quase 500 anos de história.

6. Santos e pecadores. Som os salvos, mas ao mesmo tempo carregamos limitações ancestrais. Cada pessoa é uma complexidade de sentimentos e ideais, nada fácil de catalogar ou compreender. A vida comunitária não é fácil, por mais que a desejemos. A complementariedade é, muitas vezes, sacrifício e lapidação.

"Quod natura non dat salmantica non praestat". Dito de outro modo: Deus não força a natureza humana! Quanto mais uma pessoa trabalhar positivamente suas capacidades humanas, tanto mais poderá colocá-las a serviço de Deus e dos outros. O inverso, por desgraça, também é verdadeiro, pois ninguém pode dar o que não tem!

Analisemos brevemente a personalidade psicológica de Inácio, para entender melhor os seus relacionamentos interpessoais. Inácio de Loyola foi uma pessoa de qualidades humanas notáveis; é próprio de personalidades fortes conterem, também, grandes defeitos. Caminhar para o sol, sem olhar para a própria sombra, eis o segredo para não se perder e cair na caminhada!

Quais as luzes e sombras, qualidades e defeitos, na personalidade de Inácio de Loyola? Quais foram suas raízes? Cada um carrega dentro de si, não só o inconsciente coletivo do seu povo, mas também e sobretudo o da sua própria família. Com Inácio não foi diferente.

Ínhigo (Inácio!) Lopez de Loyola pertence a uma família belicosa. Acaso os dois lobos do caldeirão, no escudo de armas da Casa-torre, não dizem o que a família Lopez (= lobo!) faziam? Eles entravam, como lobos, até o mais íntimo das outras casas, para roubar-lhes o próprio alimento! Não só o pai de Inácio dedicou-se às armas, mas também seu avô, bisavô, tetravô... Todos os seus irmãos, exceto o que seguiu carreira eclesiástica, se dedicaram ao serviço dos reis de Castela, empunhando armas ou participando da conquista da América... Como Deus trabalhou para fazer desta pessoa um santo!

A psicologia atribui grande importância aos fatores hereditários e às condições ambientais da primeira idade na configuração psicológica do indivíduo. Família e povo são muito determinantes! Da sua família Inácio aprendeu a ser educado, teimoso e belicoso; do seu povo, tornou-se reflexivo, calado e sumamente prático.

Inácio possui uma inteligência mais realista do que cerebral. Ele percebe de tal modo o essencial, que vai direto ao assunto, sem se perder em poesias e lirismos. A estrutura do seu pensamento é sólida e organizada. Ele se impõe pela força das idéias e a objetividade da proposta. É um homem de grande força de vontade! Possui espírito de auto-domínio; é hiper-ativo, líder e não se deixa vencer pelas dificuldades. Diante do cansaço, doença e dor ele tem uma resistência incrível.

Inácio possui um grande orgulho e uma forte sensualidade que o levam a impulsos fortes que, mais tarde, conseguirá controlar. Ao mesmo tempo tem grande sensibilidade, capaz de vibrar com a natureza, música ou poesia. Por natureza é muito independente, egoísta, duro e às vezes, exerce grande atração, sobretudo nos temperamentos femininos; pela graça será um apaixonado por Jesus Cristo e o seu Reino.
Como eram as relações humanas entre Inácio e seus companheiros? Catalogando os relacionamentos existentes entre pessoas como bons (harmoniosos), maus (não harmoniosos) e de mais ou menos, percebemos que Inácio dava-se muito bem com seis dos oito companheiros: Fabro, Laynez, Xavier, Salmerón, Jayo e Broet e mais ou menos com Rodrigues e Bobadilla. Com ninguém ele se dava mal.

Homens de diferentes nacionalidades e temperamentos souberam viver juntos e realizar grandes coisas pela experiência de Deus que fizeram e sempre continuaram a fazer. Foi Deus quem os uniu e os manteve juntos, para um maior serviço divino.

Deus configurou Inácio de Loyola de tal modo que o fez companheiro inseparável de Jesus! E você está sendo configurado a imagem de quem?
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