Anselmo Borges Sobre o silêncio: há muitos silêncios (I)
"Numa conferência sobre o silêncio, comecei por pedir um minuto de silêncio. E em silêncio perguntei-me como é que os participantes — este, aquela — terão ocupado esse minuto"
"A pergunta coloca-se aliás em relação a todos os minutos de silêncio pedidos em diversas circunstâncias. Sim, como se ocupa esse minuto de silêncio? Evidentemente, vai depender também das circunstâncias e de quem pede esse minuto"
"Há muitos tipos de silêncio. Logo de início, é essencial entender que há os maus silêncios, alguns abomináveis, que é preciso exorcizar; depois, aqueles que a vida nos traz"
"Em terceiro lugar, reflectir sobre uma cultura da pausa e do silêncio e ouvir o silêncio, se quisermos ser verdadeiramente humanos e não perder o essencial"
"Há muitos tipos de silêncio. Logo de início, é essencial entender que há os maus silêncios, alguns abomináveis, que é preciso exorcizar; depois, aqueles que a vida nos traz"
"Em terceiro lugar, reflectir sobre uma cultura da pausa e do silêncio e ouvir o silêncio, se quisermos ser verdadeiramente humanos e não perder o essencial"
Numa conferência sobre o silêncio, comecei por pedir um minuto de silêncio. E em silêncio perguntei-me como é que os participantes — este, aquela — terão ocupado esse minuto. A pergunta coloca-se aliás em relação a todos os minutos de silêncio pedidos em diversas circunstâncias. Sim, como se ocupa esse minuto de silêncio? Evidentemente, vai depender também das circunstâncias e de quem pede esse minuto.
Afinal — e isso é decisivo —, há muitos tipos de silêncio. Logo de início, é essencial entender que há os maus silêncios, alguns abomináveis, que é preciso exorcizar; depois, aqueles que a vida nos traz: uns impostos por situações dramáticas, outros, silêncios da decência humana, outros ainda, silêncios abençoados, que nos vêm ao encontro na exultação da vida; impõe-se, em terceiro lugar, reflectir sobre uma cultura da pausa e do silêncio e ouvir o silêncio, se quisermos ser verdadeiramente humanos e não perder o essencial.
A. Comecemos pelos primeiros, os maus silêncios. Só exemplos.
O silêncio faltoso ou mesmo pecador. Quando, na confissão, as pessoas me pediram ou pedem para fazer perguntas, a única pergunta que fiz ou faço é: “Há alguém com quem não fala?”. Negar a palavra a alguém, ao menos uma saudação, um “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”, é uma forma de agressão.
Tradicionalmente, até se usava uma expressão bela: para saudação, dizia-se “salvar” alguém, de tal modo que a pessoa que não foi saudada sentia-se tão magoada que dizia ou diz: “Imagine: nem me deu a salvação, essa pessoa não me salva”, e isso equivale a: “trata-me como se eu fosse um ninguém”.
Como é uma falta não pegar ao menos no telefone e dirigir uma palavra de saudação, de conforto, de solidariedade, a alguém que está na solidão, uma solidão que pode ser mortal. Como é mortal o silêncio que “ouvimos” num restaurante, por exemplo, com pais e filhos todos a dedar e sem uma palavra entre eles...
O silêncio mortalmente cobarde. Tantos que deviam uma palavra de explicação para o mal feito, mas abotoam-se no silêncio. A todos os níveis. Nem uma palavra de desculpa... E era obrigatório denunciar as injustiças, repor a verdade, mas isso não foi, não é, feito por medo e cobardia..., silêncio criminoso. Que dizer do silêncio e do encobrimento dos abusos sexuais do clero...
O silêncio indelicado, egoísta. Não houve, não há, uma palavra de gratidão por um favor, uma atenção, uma delicadeza. Por ocasião de uma festa, num aniversário, no meio de um pesar, pessoal ou familiar, não há a lembrança de uma palavra.
O silêncio amuado. O miúdo ou até já não miúdo, que amua, senta-se a um canto em silêncio torcido.
O silêncio manhoso. Alguém poderia obter uma vantagem para a sua vida. Isso não aconteceu, por causa do silêncio invejoso de alguém.
O silêncio irresponsável. Pessoas caíram na vida, porque alguém fez silêncio, não avisou.
O silêncio ignorante. Alguém devia responder, saber para formar, mas não responde, não forma, porque não sabe, é culpadamente ignorante.
B. 1. Passamos aos silêncio que a vida traz, na sua dramaticidade.
O silêncio aterrado. Perante a iminência de um desastre brutal e inevitável..., a acontecer, não há tempo para palavras, fica-se em silêncio. Estava com uns amigos, quando surgiu a notícia: em França, um homem atacou com uma faca quatro crianças. Ficámos estarrecidos, em silêncio, não há palavras...
O silêncio recolhido. Perante a morte, sobretudo inesperada, de alguém muito, muito querido, muito querida..., no encontro com familiares e amigos, só restam um abraço, muito, muito apertadamente afectuoso, e um rosto em lágrimas. Na morte, somos remetidos para o silêncio, o silêncio que ela mesma constitui — o que dizemos exactamente, quando dizemos que alguém morreu? E aí está, do seu lado e do nosso lado, o silêncio fundo, misterioso, inabarcável, de um cemitério. O cemitério está num silêncio sepulcral e toda a nossa tagarelice, mesmo quando se é “uma picareta falante”, cai no silêncio.
O silêncio de chumbo. Perante certas catástrofes e alguns funerais, faz-se “um silêncio de chumbo”.
B. 2. Silêncios que a vida requer na sua decência.
O silêncio imposto. Uma autoridade (o pai, a mãe, um professor...) manda calar e faz-se imperativamente silêncio.
O silêncio obrigatório. O segredo da confissão, por exemplo, é inviolável e tem de ser mantido em silêncio. Também há o segredo de justiça. A propósito: a quantas pessoas confiaria um segredo?
O silêncio secreto. Ai! Se tantos silêncios apenas balbuciados por cada um, cada uma saíssem do silêncio!...
O duplo silêncio da admiração positiva. No mausoléu de Immanuel Kant na antiga Königsberg, Prússia oriental, actual Kaliningrado, um enclave russo, encontra-se uma placa com o seu texto célebre, que diz o duplo silêncio: o silêncio admirativo e o silêncio imperativo da consciência que grita: “Duas coisas enchem o ânimo de uma admiração e de uma veneração sempre novas e crescentes quanto mais frequentemente e com maior persistência delas se ocupa a reflexão: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim.”
O silêncio do espanto perturbado. Afirmando-se o ser humano animal racional, o que dizer perante o aumento crescente de armamento, incluindo o nuclear, de tal modo que a Humanidade corre cada vez mais o risco de pôr fim a si própria, num suicídio colectivo?
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