Pena de morte ou tortura?
Tantas coisas pavorosas acontecem hoje em dia nas guerras em curso – Oriente
Médio e Ucrânia – que outras notícias igualmente ou mais assustadoras podem passar
despercebidas. A meus olhos não passou desapercebido as notícias que cercaram a
última execução de um prisioneiro no estado do Alabama com um novo método letal: a
asfixia por gás nitrogênio.
O episódio sucede quando o país começava a viver um declínio da pena de morte.
Dados da grande imprensa informam que segundo o relatório do Centro de
Informações sobre a Pena de Morte (DPIC), apenas cinco estados realizaram
execuções e sete emitiram novas sentenças de morte em 2023. Isso representa o
menor número em 20 anos. Além disso, pela primeira vez, diz o documento, uma
pesquisa Gallup relatou que é maior o número de estadunidenses que acreditam que a
pena de morte é administrada de maneira injusta (50%) do que justa (47%),
questionando assim a existência mesmo deste tipo de punição jurídica. Quando os
ativistas e as ONGs pela paz viam com otimismo esse declínio da pena capital no
país, a história da condenação de Kenneth Smith e sua execução no último dia 26 de
janeiro levanta novas e terríveis questões sobre o problema.
A trajetória de Kenneth Smith até a morte foi dolorosa e cheia de idas e vindas. Sua
condenação radica no assassinato de Elizabeth Sennett, em 1988, por encargo do
marido da mesma que pretendia apossar-se do montante de seu seguro e viver com a
amante com quem já se relacionava naquela época. Para tal, contratou pessoas e
entre elas se encontrava Smith. No decorrer das investigações, os culpados foram
julgados e presos exceto o mandante que se suicidou uma semana após o
assassinato, quando constatou que a investigação chegaria a seu nome.
Kenneth Smith foi julgado duas vezes e no segundo julgamento obteve por 11 votos a
1 a recomendação de prisão perpetua. Essa sentença, no entanto, foi anulada por um
juiz que o condenou à morte. Passou anos no corredor da morte quando em novembro
de 2022 foi levado à execução por injeção letal. Porém a injeção não conseguiu
penetrar com seu líquido letal no corpo de Smith. Os executores da pena não
conseguiram perfurar e penetrar em uma veia sequer do condenado após várias
tentativas em inúmeras partes do corpo. Estando submetido a este cruel e angustiante
procedimento por várias horas, Smith viu expirar o prazo para sua execução e ver a
mesma anulada. Voltou ao corredor da morte porque o estado não conseguira matá-lo
pelo método utilizado nos cárceres do Alabama com essa finalidade.
Foi então que se cogitou perpetrar sua execução pelo método de hipoxia de
nitrogênio, ou seja, aplicar-lhe uma máscara no rosto que o asfixiasse pela emissão do
gás de nitrogênio. Informam as fontes da justiça do Alabama que o condenado havia
concordado e até solicitado que lhe fosse aplicado esse método diante do fracasso do
anterior. Mas quando foi promulgada a decisão da execução por nitrogênio, tentou
impugnar através de seus advogados o protocolo, alegando que esse lhe infligiria uma
sobrecarga de dor, e poderia não mata-lo mas provocar-lhe um derrame cerebral que
o deixaria em estado vegetativo se falhasse como o anterior.
Os apelos de Smith não foram atendidos e a execução aconteceu em 26 de janeiro
último. Parece uma história de filme de terror, mas trata-se de uma história real. Um
homem foi torturado pelo estado que deveria custodiá-lo e reabilitá-lo a partir do crime
cometido. Torturado até a morte. Física e mentalmente. O mesmo estado que não teve
competência para executá-lo por injeção letal enviou-o de volta à cadeia, onde ele
ficou por mais um longo tempo antes de então ser submetido a um método de
execução utilizado por primeira vez cujos riscos e sequelas não se podiam prever.
Efetivamente as testemunhas da execução, entre eles a esposa e os filhos do
condenado relataram que Smith teve dois a quatro minutos de convulsões e cinco
minutos de respiração forte, antes de morrer. Ao despedir-se deles, Smith teria dito:
“esta noite Alabama faz com que a humanidade dê um passo para trás. “
Uma parte da humanidade, na qual desejo e espero estar incluída, acrescenta às
palavras de um homem às portas de uma morte infligida de maneira absurdamente
cruel: “não se trata apenas de um passo para trás, meu irmão Kenneth Smith. Trata-se
de uma negação da própria identidade da mesma humanidade.” A matança
programada de um ser humano por outros que decidem dia e hora em que isto
acontecerá é a negação da própria condição humana enquanto corpo animado pelo
“nefesh” (espírito) divino.
Qual a diferença para os campos de extermínio nazistas e os gulagui? A quantidade?
Não certamente a monstruosidade do ato cometido. A humanidade dá muitos passos
atrás com esta execução e com todas as outras que ainda persistem em acontecer em
um mundo que se pretende desenvolvido e regido pela revolução tecnológica. Esta
humanidade está perdendo – e muito – para outros seres vivos, não humanos, que só
matam para se alimentar quando têm fome.
Não à toa o Papa Francisco declarou que a pena de morte é inaceitável em qualquer
caso, porque consiste em um ataque à inviolabilidade e á dignidade da pessoa. Por
isso retirou do Catecismo da Igreja Católica a admissão do uso da pena capital em
alguns casos como o de um tirano que ameaça a vida de muitas pessoas. Em seu
discurso ao congresso estadunidense em 2015, Francisco falou claramente sobre a
incompatibilidade da pena de morte com a fé cristã. Pelo visto alguns responsáveis
pela justiça daquele país não consideraram as advertências do Papa. Seguem não
apenas aplicando a pena de morte às esferas de sua responsabilidade, mas
igualmente refinando-a com requintes de horror, fazendo-a muito mais semelhante à
tortura do que à prática da justiça.