O inesgotável despontar do Reino
Vivemos nestes dias um excelenteSimpósio do Clero, que tão bem nos fez em fraternidade e partilha sacerdotais. Agradeço muito à Comissão Episcopal Vocações e Ministérios o trabalho desenvolvido para que tudo acontecesse assim. Precisamos de ocasiões como esta, para nos sustentarmos mutuamente no serviço que realizamos em cada Diocese e no conjunto da Igreja em Portugal.
Naquela noite, Pedro e os seus companheiros não tinham apanhado peixe algum, não tinham apanhado mesmo “nada”, como respondeu quando Jesus o mandou “fazer-se ao largo”. Ainda assim, à ordem de Jesus, voltou a lançar as redes. E então, só então, apanhou muito peixe.
Como sabemos, a meditação cristã deste trecho tem encontrado nele a ilustração do que a Igreja é e deve ser. Barca e pesca que só resultam à ordem de Jesus. Só e exclusivamente à ordem de Jesus. A barca de Pedro que, no grande mar deste mundo, apenas vogará à ordem de Jesus, para recolher pesca abundante numa rede que quase rompe. Só e exclusivamente assim, com tudo o que tal significa de radicalismo evangélico nas nossas pessoas, atitudes e propósitos de vida e ação. Por nós, só por nós, não conseguiremos nada.
Porque na barca vamos nós, companheiros de Pedro na faina de hoje em dia, correspondendo à vocação que igualmente nos chega da parte de Jesus. Para repetidamente nos deslumbrarmos com o que acontecer depois, se trabalharmos sempre à sua ordem e ao seu modo.
É tão fundamental e importante compreendermos isto! Não faltavam energia nem decisão a Pedro, como não faltariam aos seus companheiros. Assim enfrentavam aquele mar, que embora pequeno por vezes se agitava muito. Mas naquela noite não tinham apanhado nada.
Nos relatos evangélicos, as circunstâncias imediatas, o acontecer natural das coisas, tornam-se sempre sinal e apelo de algo mais definitivo e profundo. Daquilo que, começando aqui e agora, é superado e transformado por Cristo na realidade nova do seu Reino.
Por eles, só por eles, Pedro e os companheiros não apanharam nada naquela noite.
Com Cristo, só por Cristo, a pesca foi abundante, naquele dia tão surpreendente.
Tomando o mar pelo mundo, calmo ou alteroso, tomemo-nos também a nós pelo “mundo” que realmente somos, criaturas entre criaturas, com tudo o que possa acontecer de bom, menos bom e até nada bom… O mundo que somos sofre de grande ambiguidade entre o que faz e desfaz, o que espera e desespera, o que promete e desmente. Antigos Padres da Igreja escreveram que Deus esperou que nos convencêssemos de que por nós não conseguiríamos realizar o desejo absoluto que Ele mesmo desperta em cada um. Desejo a que só Ele corresponde fazendo-se um de nós, em Cristo.
Deixado a si próprio, o mundo corre o risco de redundar em nada, ou até no contrário do que devia ser. A começar pelo mundo que cada um transporta em si próprio, neste grande campo de batalha que é o coração humano. Dois milénios nos demonstram que a opção é dramaticamente esta: ou estamos com Cristo, ou não alcançamos nada.
Refletimos nestes dias sobre o sacerdócio e a formação sacerdotal. Pois bem: se esta formação não assentar no reconhecimento convicto de que só com Cristo o mundo, interior e exterior a cada um de nós, se pode transformar em Reino, nada faremos legitimamente como Igreja – a sua Igreja. Dito mais expressivamente, quando o mundo, no sentido fraco do termo, invade a Igreja, mundaniza-se a Igreja também. O sal das novas águas é bem outro, e se perder a força só serve para ser pisado pelos homens…
Estes dias abençoados aproximaram-nos de Cristo, que garantiu estar “no meio de nós”, como esteve naquela altura com Pedro e os seus companheiros. Sentimo-Lo muito presente, perpassando a nossa mútua companhia. Relancemos então as redes, à sua ordem e na força do seu Espírito.
A formação permanente, a nossa condição eclesial, celibatária e desprendida, mais nos aproximarão do modo de vida que Jesus levou e quer levar através de nós, como seus sacramentos pastorais. Os nossos projetos, os trabalhos que se imponham, tudo aconteça com Ele e a partir d’Ele, para que a glória de Deus seja a vida do mundo.
Disse Santo Ireneu que «a glória de Deus é o homem vivo», mas acrescentando que «a vida do homem é a visão de Deus». Visão que só alcançamos plenamente no rosto que nos oferece em Cristo.
Lembremos sempre, neste lugar sagrado e em qualquer lugar que seja, que, ainda antes da disponibilidade de Pedro para lançar de novo as redes, valeu-nos o “sim” de Maria, para que o Evangelho acontecesse no mundo. Como só com Ela continuará a acontecer.
Se a noite nada nos trouxe, acolhamos o Evangelho de cada dia como inesgotável despontar do Reino!