Francisco: “Muitas vezes as xenofobias cavalgam a onda dos populismos políticos” Demissao do Papa
"Existem colonizações ideológicas, que querem entrar na cultura dos povos e transformar aquela cultura e homogeneizar a Humanidade"
1. No passado dia 10, após uma viagem apostólica a África, visitando Moçambique, Madagáscar e Maurício, o Papa Francisco, já no avião, de regresso a Roma, deu, como é hábito, uma longa conferência de imprensa. E foi respondendo a muitas perguntas.
1. 1. Congratulou-se com o abraço histórico da paz em Moçambique: “Tudo se perde com a guerra, tudo se ganha com a paz. O esforço dos líderes das partes contrárias, para não dizer inimigos, é o de ir ao encontro um do outro. É o triunfo do país: a paz é a vitória do país, é preciso entender isso... E isso vale para todos os países, que se destroem com a guerra. As guerras destroem, fazem perder tudo”.
1. 2. África é um continente jovem, tem uma vida jovem, “se a compararmos com a Europa, e vou repetir o que disse em Estrasburgo: a mãe Europa quase se tornou “avó Europa”. Envelheceu, estamos a viver um inverno demográfico muito grave na Europa.” E acrescentou que leu algures que há um país europeu que em 2050 terá mais reformados do que pessoas a trabalhar, “e isso é trágico”.
Os jovens em África precisam de educação, “a educação é uma prioridade”. E louvou Maurício, cujo primeiro-ministro tem em mente a gratuidade do sistema educativo.
1.3. A xenofobia é “uma doença humana” e, lembrando “discursos que se assemelham aos de Hitler em 1934”, acrescentou: “muitas vezes as xenofobias cavalgam a onda dos populismos políticos”. Mas África transporta consigo também “um problema cultural que tem de ser resolvido: o tribalismo”. Temos de “lutar contra isso: seja a xenofobia de um país em relação a outro, seja a xenofobia interna, que, no caso de alguns lugares de África e com o tribalismo, leva a uma tragédia como a de Ruanda”.
“E qual é o sinal de que um grupo de pessoas é um povo? A alegria”
1.4. “São fundamentais as leis que protegem o trabalho e a família. E também os valores familiares.” E chamou a atenção para os dramas das crianças e jovens que perdem os seus laços familiares.
1. 5. “Hoje não existem colonizações geográficas — pelo menos, não tantas como antes.... , mas existem colonizações ideológicas, que querem entrar na cultura dos povos e transformar aquela cultura e homogeneizar a Humanidade. É a imagem da globalização como uma esfera, todos os pontos equidistantes do centro. Ao contrário, a verdadeira globalização não é uma esfera, é um poliedro, no qual cada povo se une a toda a Humanidade, mas preserva a própria identidade.” Contra a colonização ideológica, é preciso respeitar a identidade de cada povo e dos povos.
1. 6. Opôs-se de novo ao proselitismo em religião, lembrando uma palavra de São Francisco de Assis: “Levem o Evangelho, se for necessário, também com as palavras”. A evangelização faz-se sobretudo pelo exemplo, pelo testemunho. O testemunho provoca a pergunta: “Porque é que vive assim, porque age assim?” Aí explico: “É pelo Evangelho”. “E qual é o sinal de que um grupo de pessoas é um povo? A alegria”.
1. 7. Não podia deixar sublinhar a urgência da defesa do meio ambiente. No contexto da destruição da biodiversidade, da exploração ambiental e concretamente da desflorestação, não deixou de apontar e condenar de modo veemente a corrupção descarada: “Quanto para mim?”. “A corrupção é feia, muito feia.”
Revelou que “no Vaticano, proibimos o plástico”. É preciso defender “a ecologia, a biodiversidade, que é a nossa vida, defender o oxigénio, que é a nossa vida. O que me conforta é que são os jovens que levam adiante esta luta”, porque o futuro é deles. “Creio que ter-se chegado ao acordo de Paris foi um bom passo adiante, e depois também outros... São encontros que ajudam a tomar consciência”. E, a menos de um mês do Sínodo para a Amazónia, sublinhou: “Há os grandes pulmões, na República Centro-Africana, em toda a região Pan-amazónica, e outros menores”.
2. E vieram a pergunta e a resposta que mais visibilidade tiveram nos meios de comunicação social mundiais.
Jason Horowitz, do The New York Times, perguntou: “No voo para Maputo, reconheceu estar sob ataque de um sector da Igreja nos Estados Unidos. Obviamente existem fortes críticas de alguns bispos, há televisões católicas e sítios americanos muito críticos e até alguns dos seus aliados mais próximos falaram de um complô contra si. Há algo que esses críticos não entendem sobre o seu pontificado? Há algo que tenha aprendido com as críticas? Tem medo de um cisma na Igreja americana? E, se sim, há algo que poderia fazer — dialogar — para evitá-lo?”
E Francisco foi longo na resposta. Não é contra as críticas. “As críticas ajudam sempre, sempre. Quando se recebe uma crítica, deve-se fazer imediatamente uma autocrítica: isso é verdade ou não? E eu tiro sempre benefícios das críticas.” Reconheceu que as críticas “não vêm só dos americanos, existem um pouco por todo o lado, mesmo na Cúria”. O problema todo das críticas é se há honestidade ou não. “Uma crítica justa é sempre bem recebida, pelo menos por mim. Uma crítica leal — eu penso isto e isto — está aberta à resposta, e isso constrói, ajuda. No caso do Papa: não gosto deste Papa, critico-o, falo, escrevo um artigo e peço que ele responda. Isso é justo. Mas fazer uma crítica sem querer ouvir a resposta e sem dialogar é não amar a Igreja, é perseguir uma ideia fixa, mudar o Papa ou criar um cisma”. “Não gosto quando as críticas estão sob a mesa: sorriem para ti, mostrando os dentes e, depois, apunhalam-te pelas costas. Isso não é leal, não é humano”. “Atirar a pedra e esconder a mão... isso não serve, não ajuda. Ajuda os pequenos grupinhos fechados, que não querem ouvir a resposta à crítica”.
Há uma real ameaça de cisma? “Na Igreja houve muitos cismas”. Há o exemplo do Concílio Vaticano I, por causa da infalibilidade pontifícia. Um grupo fundou os vétero-católicos, que evoluíram e agora ordenam mulheres. Também aconteceu no Concílio Vaticano II, com a separação de Mons. Lefebvre. “Existe sempre a opção cismática na Igreja, sempre. É uma das opções que o Senhor deixa à liberdade humana. Eu não tenho medo de cismas, rezo para que não existam, porque está em jogo a saúde espiritual de tantas pessoas. Que exista o diálogo, que exista a correcção, se houver algum erro, mas o caminho do cisma não é cristão.”
Defende-se. “Um cisma é sempre uma separação elitista provocada por uma ideologia separada da doutrina. É uma ideologia, tal vez justa, mas que entra na doutrina e a separa. Por isso, rezo para que não ocorram cismas, mas não tenho medo”. Acusam-no de comunista, mas as coisas sociais que diz são as mesmas que disse João Paulo II. “Eu apenas o copio”. E o mesmo deve dizer-se quanto à questão da graça e da moral (eu julgo que, aqui, tem em mente aqueles que o acusam por abrir a porta à possibilidade da comunhão para católicos divorciados e recasados). Avisa: “Quando virem cristãos, bispos, sacerdotes rígidos, é porque por trás há problemas, não há a santidade do Evangelho. Por isso, devemos ser mansos com as pessoas que são tentadas por esses ataques, estão a passar por um problema, devemos acompanhá-las com mansidão”.
3. Francisco não exclui a possibilidade de um cisma, mas não tem medo. Ele tem muito opositores e até inimigos, incluindo cardeais influentes, como G. Müller, R. Burke, W. Brandmüller, R. Sarah, que o acusam de não ser um grande teólogo e de herético.
Pergunta-se: ele é mesmo herético? Alguém que conheça minimamente o Evangelho e tenha estudado Teologia poderá acusá-lo de herético? Alguém pode ser acusado de herético por anunciar e praticar o Evangelho, aproximando-se dos mais pobres, abandonados, marginalizados? Por proclamar que o nome de Deus é misericórdia? Por abrir a porta à possibilidade de acesso à comunhão, em casos concretos, de católicos divorciados e recasados? Por arremeter contra o clericalismo e o carreirismo e querer que a Igreja siga um caminho sinodal (caminhar juntos em Igreja, decidindo colegialmente, com a participação de todos, pois a Igreja somos todos)? Por avançar numa reforma profunda da Cúria, um verdadeiro cancro da Igreja? Por declarar a urgência da salvaguarda da Criação, do meio ambiente, da biodiversidade, de uma ecologia integral? Por exigir transparência no Banco do Vaticano (como resolver o défice de mais de 70 milhões de euros num orçamento de 300 milhões do Vaticano)? Por estabelecer normas e práticas severas para acabar com o monstro da pedofilia na Igreja? Por abrir a porta à possibilidade da ordenação de homens casados? Por querer que as mulheres tenham o lugar que lhes compete por vontade de Jesus Cristo também em lugares cimeiros de decisão na Igreja? Por promover o diálogo ecuménico e inter-religioso? Por afirmar que não se pode ficar parado e imóvel no “sempre se fez assim”? Numa palavra, por querer a Igreja que o Vaticano II sonhou?
A questão é outra: há muitos, dentro e fora da Igreja, que estão interessados em forçar a demissão de Francisco para, no conclave a seguir, eleger alguém que acabe com as reformas que ele está a operar. O superior geral dos jesuítas, Arturo Sosa, disse-o esta semana: “Existe uma luta política na Igreja entre os que querem a Igreja sonhada pelo Vaticano II e os que a não querem. Estou convencido de que não se trata só de um ataque contra o Papa. Francisco está convencido da sua acção desde que foi eleito. Na realidade, do que se trata é de influenciar a eleição do próximo Papa”.
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