Na senda do Verbo Incarnado
Como os católicos em geral, ouvimos neste Domingo o Evangelho de Marcos. Descreve-nos um dia de Jesus, no primeiro anúncio que fazia e cumpria. Sai da sinagoga, vai a casa de Simão e André, cura uma enferma e depois muitos outros. Na madrugada seguinte levanta-se e vai orar para um sítio ermo. Os discípulos procuram-no, encontram-no e pedem que regresse. A resposta que Jesus dá, tanto o define a ele como missão como nos pode e deve definir a nós – e à Universidade Católica Portuguesa – como destino.
Lembremo-la: «Vamos a outros lugares, às povoações vizinhas, a fim de pregar aí também, porque foi para isso que eu vim.» Não se trata de adequar o trecho à nossa circunstância. Trata-se de nos convertermos ao nome que usamos, Universidade Católica.
Há meio século foi a Filosofia, depois a Teologia, depois as Ciências Humanas, de Braga para Lisboa. Hoje, nestas cidades, como no Porto e em Viseu, desdobram-se cursos, criam-se outros novos, somam-se alunos e docentes de Portugal e muitas outras proveniências. No conjunto do ensino superior do país, quanta inovação, quanta criatividade, quantos resultados de excelência, se somaram e continuarão a somar, para benefício da sociedade e da cultura!
E sem que nada disto nos pese enquanto Estado, sociedade politicamente organizada. Dada a escassa conjugação da solidariedade com a subsidiariedade na ordem vigente, em especial no que respeita à liberdade de ensino, quase tudo é suportado pelas contribuições das famílias e de outros amigos da Universidade Católica, além do apoio da Igreja.
Assim crescemos e continuamos a crescer. Seguindo a Cristo, como ouvimos, também a Universidade Católica irá a novos lugares, não necessariamente físicos, mas no vasto campo da ciência, das humanidades e da cultura. É Portuguesa, e Portugal é maior do que a sua geografia.
Há realmente muito a atingir em áreas pouco cobertas. Há sobretudo que ir ainda mais longe e mais a fundo naquilo que já se faz, para lhe dar uma consistência humana e cristã que supere qualquer positivismo, utilitarismo ou reducionismo ético. Quando fomos a Roma visitar o Papa Francisco, a 26 de outubro último, ouvimos-lhe palavras como estas: «Por detrás do docente católico fala uma comunidade crente, na qual durante os séculos da sua existência, amadureceu uma determinada sabedoria da vida; uma comunidade que guarda em si um tesouro de conhecimento e experiência ética, que se revela importante para toda a humanidade. Neste sentido, o docente fala não tanto como representante duma crença, como sobretudo testemunha da validade duma razão ética».
Acolho com particular atenção estas palavras do Papa. Nalguma sociocultura aprecia-se mal a definição confessional no espaço público. Como se o espaço de todos não fosse necessariamente preenchido pelas convicções de cada um, mesmo institucionalmente compartilhadas, ou como se o exercício da cidadania ativa exigisse a abstenção cultual e cultural. Ou seja, deixasse campo livre a alguma ideologia oficial ou oficiosa.
Bem pelo contrário, como dizia o Papa Francisco, uma Universidade como a nossa oferece, na variedade dos saberes, a racionalidade ética da inspiração que a move, comprovada por séculos de evolução criativa. Omitir essa fonte representaria um enorme prejuízo para a sociedade em geral. A história não nos deixa qualquer dúvida a este respeito. O encerramento das dezenas de colégios jesuítas em 1759; o confisco e desbaratamento de tantas bibliotecas monásticas e conventuais em 1834; o que se repetiu em 1910 com alguns colégios e bibliotecas: tudo isto exemplifica cruamente o que os nivelamentos ideológicos por parte de qualquer poder impositivo infligem à sociedade e à cultura.
Há grandes lacunas na nossa histórica cultural e científica e algumas ainda se arrastam atualmente. Derivam em parte da ausência imposta daquela “metade dos nossos sábios”, como o insuspeito Alexandre Herculano se referia a monges e frades expulsos dos seus cenóbios (Os egressos). Foi aliás a essa lacuna que o assim chamado “movimento católico” procurou responder desde os finais do século XIX, com a criação dum estabelecimento como a nossa Universidade finalmente veio a ser, a partir de 1967.
Retomemos ainda o trecho evangélico desta Santa Missa. Retomemo-lo no modo de Deus acontecer no mundo, como era com Jesus. Vem para todos, mas está inteiramente onde estiver. Corresponde totalmente ao que o requeira mais particularmente. A sua salvação acontece naquela altura, naquele gesto e com aquela sequência. Assim ouvimos: «A sogra de Simão estava de cama com febre […]. Jesus aproximou-se, tomou-a pela mão e levantou-a.» E assim será sempre, mesmo nos últimos momentos da cruz: responderá a um dos crucificados com ele, abrindo-lhe o paraíso para esse mesmo dia; confiará a sua própria mãe ao discípulo, alargando a maternidade de Maria a todos nós, um por um. Sempre o universal no particular, sempre o geral no concreto. É esta a religião do Verbo Incarnado e não pode ser outro o método da nossa Universidade.
Assim nos dissera também o Papa, quando o visitámos: «Não basta realizar análises, descrições da realidade; é necessário gerar espaços de verdadeira pesquisa, debates que gerem alternativas para as problemáticas de hoje. Como é necessário descer ao concreto!»
Por isso mesmo concluo, citando palavras da nossa Magnífica Reitora na sua Mensagem para este Dia Nacional da Universidade Católica Portuguesa, com o lema que escolheu – A verdade no concreto: «Ora, se a missão da universidade é a busca da verdade, também é certo que esta missão não constitui uma promessa abstrata, mas que tem uma manifestação material, concreta na forma como através do ensino e investigação contribui para melhorar a condição humana». Assim acertamos com as indicações do Papa Francisco. Assim prosseguimos na senda do Verbo Incarnado.
Lisboa, igreja de São Roque, 4 de fevereiro de 2018