Cardeal Clemente para os ordinandos Saberão que há profetas no meio deles

Homilia na Missa de Ordenações
Homilia na Missa de Ordenações

"Aqui reunidos para a Ordenação de alguns irmãos no presbiterado e no diaconado, ouvimos a Palavra de Deus deste Domingo, com especial aplicação aos ordinandos, que continuarão o múnus profético de Cristo"

"Na verdade é de 'profetas' que nos fala. Fixemo-nos neste ponto: Ser profeta implica viver positivamente o facto de ser divinamente garantido, mesmo quando humanamente pouco aceite"

"Não significa isto que ser profeta seja motivo de tristeza, bem pelo contrário. É antes sinal de que se encontrou a perfeita alegria"

"Caríssimos ordinandos: Pelo percurso que fizestes até aqui, reconheço e confirmo que é esta a vossa convicção. O Evangelho é 'boa nova'. Exige tudo, para nos dar muito mais"

"Exercereis o vosso ministério profético entre muitas contradições exteriores e resistências interiores, que também sentireis... Alimentai-vos constantemente da Palavra divina"

"De profecia precisamos sempre. Princípios de vida e convivência, que pareciam assentes, requerem que os lembremos e aprofundemos agora"

"Para concluir, a frase de Ezequiel que há pouco ouvimos: 'Saberão que há um profeta no meio deles'. E peço a Deus que isto mesmo se refira a cada um de vós, pela graça da ordenação que recebeis"

Aqui reunidos para a Ordenação de alguns irmãos no presbiterado e no diaconado, ouvimos a Palavra de Deus deste Domingo, com especial aplicação aos ordinandos, que continuarão o múnus profético de Cristo.

Na verdade é de “profetas” que nos fala. Assim na primeira leitura, referindo-se a Ezequiel: «Eis o que diz o Senhor: “Podem escutar-te ou não […], mas saberão que há um profeta no meio deles”.» Assim também no Evangelho, quando Jesus lamenta o pouco acolhimento que encontrara: «Jesus disse-lhes: “Um profeta só é desprezado na sua terra…”»

Fixemo-nos neste ponto: Ser profeta implica viver positivamente o facto de ser divinamente garantido, mesmo quando humanamente pouco aceite. Aliás, quando assim não for, caríssimos irmãos, fiquemos alerta, porque a popularidade fácil pode ser sinal de infidelidade grande. Assim nos advertiu Jesus no final das bem-aventuranças: «Ai de vós, quando todos disserem bem de vós! Era precisamente assim que os pais deles tratavam os falsos profetas» (Lc 6, 26).

Não significa isto que ser profeta seja motivo de tristeza, bem pelo contrário. É antes sinal de que se encontrou a perfeita alegria, qual seja a de nos pronunciarmos segundo Deus e para salvar a todos, mesmo e sobretudo quanto tal implica verdadeira conversão, própria e alheia. Como as mesmas bem-aventuranças tinham dito atrás, referindo o que se pode sofrer por causa de Cristo: «Alegrai-vos e exultei nesse dia, pois a vossa recompensa será grande no Céu» (Lc 6, 23).

Caríssimos ordinandos: Pelo percurso que fizestes até aqui, reconheço e confirmo que é esta a vossa convicção. O Evangelho é “boa nova”, precisamente por nos trazer a notícia do verdadeiro valor das vidas e das coisas. É um olhar mais profundo, um juízo perfeito e uma palavra que cura – mesmo quando “arde”, pois foi esse mesmo o fogo que Cristo ateou nos corações. Não se contenta com meios-termos que entretêm. Exige tudo, para nos dar muito mais.

Os que aqui crescestes, encontrastes uma mentalidade difusa que desconhece ou distorce o Evangelho e o que ele propõe de verdadeiro, bom e belo. Por culpa nossa ou alheia, assim é geralmente. Quando sentistes mais fortemente a vocação divina, também percebestes melhor como tal implicava exigência e contraste em relação ao que vulgarmente se diz e pratica. Para serdes coerentes tivestes de aprender a ser profetas. Uma aprendizagem que durará toda a vida e vos há de preencher o ministério. Neste ponto não há lugar para ilusões, apenas para convicções. Só tereis de estranhar se parecer fácil.

Biblicamente, ser “profeta” significa ser vidente e porta-voz, ou seja, ver as coisas pelos olhos de Deuse proferir palavas que d’Ele venham, seja em que circunstância for. Como Jesus dizia de si próprio, em trechos como este: «… Eu não falo por mim mesmo, mas o Pai, que me enviou, é que me encarregou do que devo dizer e anunciar. E Eu bem sei que este seu mandato traz consigo a vida eterna; por isso, as coisas que Eu anuncio, anuncio-as tal como o Pai as disse a mim» (Jo 12, 49-50).

Estas palavras de Cristo concretizavam absolutamente em si a condição profética dos que O tinham profetizado a Ele. Todos estavam convictos de falar a partir de Deus, arriscando-se pelo verdadeiro bem de um povo que se esquecia de ser “de Deus”.

Assim o Primeiro Isaías, logo no começo: «Ouvi, ó céus, e escuta ó terra, porque é o Senhor quem te fala…» (Is 1, 2). E o Segundo, com palavras de conforto que só Deus podia dar aos exilados de Babilónia: «Consolai, consolai o meu povo, é o vosso Deus quem o diz…» (Is 40, 1). E ainda o Terceiro, tempos depois: «Eis o que diz o Senhor: “Respeitai o direito, praticai a justiça, porque a minha salvação está mesmo a chegar…» (Is 56, 1).

A mesma convicção em Jeremias, no drama interior com que prossegue, apesar de se sentir incapaz para uma missão tão grande e em contexto tão difícil: «O Senhor replicou-me: “Não digas: sou um jovem, pois irás onde Eu te enviar e dirás tudo o que Eu te mandar. Não terás medo diante deles, pois Eu estou contigo para te livrar”» (Jr 1, 7-8). E mais à frente, num trecho paradigmático da condição profética, com o seu drama e a sua glória: «Seduziste-me, Senhor, e eu deixei-me seduzir! Tu me dominaste e venceste. Sou objeto de contínua irrisão, e todos escarnecem de mim. […] A mim mesmo dizia: “Não pensarei nele [o Senhor] mais! Não falarei mais em seu nome!” Mas, no meu coração, a sua palavra era um fogo devorador, encerrado nos meus ossos. Esforçava-me por contê-lo, mas não podia» (Jr 20, 7.9).

Finalmente Ezequiel, profeta entre os exilados, neste expressivo passo, de assimilação total da palavra divina a transmitir aos outros: «Disse-me [o Senhor]: “Filho do homem, come aquilo que te é apresentado, como este manuscrito e vai falar à casa de Israel.” Abri então a boca e Ele deu-me o manuscrito a comer. E disse-me: “Filho do homem, alimenta-te e sacia-te com este manuscrito que agora te dou.” Comi-o e ele foi, na minha boca, doce como o mel» (Ez 3, 1-3).

Como sabemos, a doçura não provinha de anunciar coisas fáceis, mas sim de ser palavra divina, como a canta um salmo: «As sentenças do Senhor são verdadeiras, / todas elas são justas./ São mais desejáveis que o ouro, o ouro mais fino,/ são mais doces do que o mel, o puro mel dos favos» (Sl 19, 10-11).

Caríssimos ordinandos: Exercereis o vosso ministério profético entre muitas contradições exteriores e resistências interiores, que também sentireis...Alimentai-vos constantemente da Palavra divina, como o Lecionário de cada dia e a Liturgia das Horas vo-la oferecem. Com a Palavra sabereis o que dizer e fazer a partir de Deus, nas circunstâncias que aparecerem. Sem ela, vivemos só por nós e pouco ou nada servimos o seu povo.

Por isso mesmo é dito na ordenação diaconal, num trecho que resume a vida em profecia: «Recebe o Evangelho de Cristo, que tens missão de proclamar: Crê o que lês, ensina o que crês e vive o que ensinas».

De profecia precisamos sempre. Princípios de vida e convivência, que pareciam assentes, requerem que os lembremos e aprofundemos agora. Isto mesmo vos será particularmente requerido, caros ordinandos, no ministério que recebeis.

A começar pelo que respeita à vida humana e à dignidade intrínseca de todo o seu percurso, do ventre materno à morte natural. Percurso cuja realidade essencial e evolutiva a ciência demonstra hoje como nunca, ainda que a prática o contradiga tanto. E lembrando que, por “natural”, continuamos a referir o que nos define em comum, como aparecemos no mundo e nos garantimos em conjunto, na humanidade de todos. Humanidade que se desenvolve certamente, como cultura e civilização, mas não há de contradizer-se a si própria, tornando-se no que não é. 

Assim no que toca à consciência – falo de “consciência” como saber refletido e não mero sentimento ou reação imediata –, que tanto se manifesta na ação como na objeção e tem de ser respeitada e não lesada por qualquer pressão exterior, “legal” que fosse - como sucederia, por exemplo, obrigando-se um profissional da saúde a colaborar contra vontade na prática do aborto ou da eutanásia

Assim no que toca à justa repartição dos bens, que só legitimante se usufruem quando se respeita o seu destino universal, ainda que pública ou particularmente administrados. O “novo normal” que procuramos, também neste campo, não poderá manter e muito menos ampliar o fosso – quase precipício - entre os pouquíssimos que têm quase tudo e os muitos que não têm nada, ou quase nada. Como não poderá substituir sem mais a atividade humana pela tecnologia em avanço, pondo em causa o presente e o futuro de trabalhadores e famílias. Tudo isto ofende a Deus e “brada aos céus”, alargando a este ponto o que já advertia São Tiago (cf. Tg 5, 4). Os tempos e os modos mudam certamente; mas são maus ou bons na exata medida em que lesam ou favorecem as pessoas, todas e cada uma.

Mision profética

A tudo isto e muito mais se aplica a missão profética. De Deus provinda, só com Deus se sustenta. Disse-o São Paulo, como há pouco ouvimos, num trecho que deveis guardar no coração, caríssimos ordinandos, para o repetirdes nas dificuldades que não faltarão: «Alegro-me nas minhas fraquezas, nas afrontas, nas adversidades, nas perseguições e nas angústias sofridas por amor de Cristo, porque quando sou fraco, então é que sou forte». Contai sempre com Maria, Senhora Nossa, em cuja humildade pôs Deus os olhos, para realizar plenamente a profecia – em Jesus, bendito fruto do seu ventre.

Retomo, para concluir, a frase de Ezequiel que há pouco ouvimos: «Saberão que há um profeta no meio deles». E peço a Deus que isto mesmo se refira a cada um de vós, pela graça da ordenação que recebeis.

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