O Homem: questão para si mesmo: O contributo da literatura (III)
É urgente ir ao encontro do Homem, não do Homem abstracto, mas de um ser humano concreto, do “mistério daquele ser concreto com as feridas, os desejos, as recordações e as esperanças da sua vida”
E Francisco conclui luminosamente: “Não podemos renunciar à escuta das palavras que nos deixou o poeta Paul Celan: «Quem realmente aprende a ver aproxima-se do invisível»
| Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia
Enquanto regi a cadeira de Antropologia Filosófica na Faculdade de Letras em Coimbra, esforcei-me sempre por aliciar os estudantes para a leitura da grande literatura mundial, concretamente das tragédias e dos romances, na convicção de que seria esse um dos lugares indispensáveis para poderem penetrar de modo substancial na urgência do conhecimento da realidade humana no seu enigma e mistério.
Foi, por isso, para mim, uma surpresa feliz entrar em contacto com algo totalmente inédito na história das publicações papais: a Carta do Papa Francisco sobre o papel da literatura na educação, publicada com a data de 17 de Julho de 2024. Ela teria sido escrita pensando na formação dos futuros padres, mas, pensando bem, é para todos, reconhecendo “o valor da leitura de romances e poemas no caminho do amadurecimento pessoal”.
Francisco tem consciência de que é necessário “ultrapassar a obsessão dos ecrãs, dedicando-se tempo à literatura, a momentos de leitura serena e livre, a falar de livros que, novos ou antigos, continuam a dizer-nos tanto”. Pessoalmente, quero lembrar, entre outros, o neurocientista Michel Desmurget, autor de A fábrica de cretinos digitais e, mais recentemente, de Ponham-nos a ler! A leitura como antídoto para os cretinos digitais, que mostrou como a dependência dos ecrãs pura e simplesmente estupidifica:
“Ler influencia positivamente todas as dimensões fundamentais da nossa humanidade.” Concordando, Francisco lamenta que, “com poucas excepções, a atenção à literatura é considerada como algo não essencial. A este respeito, gostaria de afirmar que tal perspetiva não é boa. Ela está na origem de uma forma de grave empobrecimento intelectual e espiritual dos futuros padres, que ficam assim privados de um acesso privilegiado, precisamente através da literatura, ao coração da cultura humana e, mais especificamente, ao coração do ser humano. De uma forma ou outra, a literatura tem a ver com o que cada um de nós deseja da vida, uma vez que entra numa relação íntima com a nossa existência concreta, com as suas tensões essenciais, com os seus desejos e os seus significados.”
Ele próprio foi professor de Literatura, sabendo, pois, do que que fala, e dá um exemplo: “Eu gosto muito dos artistas das tragédias, porque todos podemos sentir as suas obras como nossas, como a expressão dos nossos próprios dramas. No fundo, ao chorar o destino das personagens, estamos a chorar por nós mesmos: o nosso vazio, as nossas falhas, a nossa solidão.” Na verdade — e cita Karl Rahner —, a literatura inspira-se na quotidianidade vivida, suas paixões e acontecimentos reais, como «a acção, o trabalho, o amor, a morte e todas as pobres coisas que enchem a vida».
É urgente ir ao encontro do Homem, não do Homem abstracto, mas de um ser humano concreto, do “mistério daquele ser concreto com as feridas, os desejos, as recordações e as esperanças da sua vida”. E para isso está também o recurso assíduo à literatura, que, entre tantas outras vantagens, “melhora a capacidade de concentração, reduz os níveis de deficit cognitivo e acalma o stress e a ansiedade. Mais ainda: prepara-nos para compreender e, assim, enfrentar as várias situações que podem surgir na vida. Ao ler, mergulhamos nas personagens, nas preocupações, nos dramas, nos perigos, nos medos de pessoas que acabaram por ultrapassar os desafios da vida, ou talvez, durante a leitura, demos às personagens conselhos que mais tarde nos servirão a nós mesmos.”
E cita M. Proust: os romances desencadeiam «em nós, no espaço de uma hora, todas as alegrias e desgraças possíveis que, durante a vida, levaríamos anos inteiros a conhecer minimamente; e, dessas, as mais intensas nunca nos seriam reveladas, porque a lentidão com que ocorrem nos impede de as perceber”. E C. S. Lewis: «Ao ler as grandes obras da literatura, transformo-me em milhares de pessoas sem deixar, ao mesmo tempo, de permanecer eu mesmo”, e continua: “Neste ponto, como na religião, no amor, na ação moral e no conhecimento, ultrapasso-me a mim próprio e, no entanto, quando o faço, sou mais eu do que nunca.»
Para que serve a literatura?“Ela ajuda-nos a dizer a nossa presença no mundo, a “digeri-la” e a assimilá-la, captando o que vai para além da superfície da experiência; serve, portanto, para interpretar a vida, discernindo os seus significados e tensões fundamentais.” Mais: o seu olhar “forma para o descentramento, para o sentido do limite, para a renúncia ao domínio cognitivo e crítico da experiência, ensinando-lhe uma pobreza que é fonte de extraordinária riqueza. Ao reconhecer a inutilidade e, talvez até, a impossibilidade de reduzir o mistério do mundo e do ser humano a uma polaridade antinómica de verdadeiro/falso ou de certo/errado, o leitor aceita o dever de julgar não como instrumento de domínio, mas como impulso para uma escuta incessante e como disponibilidade para se envolver nessa extraordinária riqueza da história que se deve à presença do Espírito, e também se dá como Graça, isto é, como acontecimento imprevisível e incompreensível que não depende da ação humana, mas redefine o humano enquanto esperança de salvação.”
E Francisco conclui luminosamente: “Não podemos renunciar à escuta das palavras que nos deixou o poeta Paul Celan: «Quem realmente aprende a ver aproxima-se do invisível» . E eu lembrei-me de Paul Klee: “A arte não reproduz o visível, ela torna visível.”
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