Francisco e o pós-pandemia (I) Não se pode buscar soluções particulares para problemas que são globais
A pandemia colocou de modo violento à nossa frente “duas realidades iniludíveis da existência humana: a doença e a morte”
No imediato, é necessário assegurar “a distribuição equitativa das vacinas, que devem beneficiar toda a Humanidade”
É necessária uma espécie de “nova revolução copernicana” que ponha a economia ao serviço do Homem e não ao contrário
É necessária uma espécie de “nova revolução copernicana” que ponha a economia ao serviço do Homem e não ao contrário
| Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia
São 187 os países que têm relações diplomáticas com a Santa Sé/Vaticano. Também várias organizações internacionais, como a União Europeia, a Liga dos Estados Árabes, a Organização Internacional para as Migrações, o Alto-Comisssariado das Nações Unidas para os Refugiados, a Ordem Soberana Militar de Malta, têm um representante junto do Papa.
1. Como habitualmente, também este ano o Papa Francisco saudou o Corpo Diplomático num discurso com propostas para o futuro novo. Derrotar o vírus é “uma responsabilidade que nos envolve a todos: cada um de nós pessoalmente e também os nossos países.” O ano de 2020 “deixou atrás de si um peso de medo, desânimo e desespero, a par de muitos lutos.” A pandemia mostrou como somos interdependentes: os seus efeitos são verdadeiramente globais, afectando toda a Humanidade. “Pôs-nos em crise, mostrando-nos o rosto de um mundo doente, não só pelo vírus, mas também no meio ambiente, nos processos económicos e políticos, e ainda mais nas relações humanas. Colocou diante de nós uma alternativa: continuar pelo caminho que temos seguido ou empreender uma nova via.”
Francisco apresentou as crises causadas ou manifestadas pela pandemia, examinando ao mesmo tempo “as oportunidades que delas derivam para construir um mundo mais humano, justo, solidário e pacífico”. O ponto central é a dignidade inviolável da pessoa humana. Tendo I. Kant em fundo, disse: “Cada pessoa humana é um fim em si mesma, nunca um simples instrumento cujo valor é medido só pela sua utilidade, e foi criada para conviver na família, na comunidade, na sociedade, onde todos os membros têm a mesma dignidade. Desta dignidade derivam os direitos humanos, bem como os deveres”, e lembra, por exemplo, a responsabilidade de acolher e ajudar os pobres, os doente, os marginalizados. “Se se suprime o direito à vida dos mais débeis, como se poderá garantir de facto todos os outros direitos?”.
Aqui, impõe-se perguntar: qual é o fundamento da dignidade da pessoa humana, fim em si mesma e não simples meio? Pessoalmente, defendo que esse fundamento se mostra e se encontra na constituição do ser humano, constiuição que o faz perguntar, mas de tal modo que, de pergunta em pergunta, inevitavelmente chegará à pergunta pelo Infinito. Nesta capacidade de perguntar ao Infinito pelo Infinito, em última análise, por Deus, mostra-se que o Homem tem em si algo de infinito. E só o Infinito é fim e não meio: na verdade, o que é que há para lá do Infinito? Por isso, a pessoa humana é livre e faz a experiência da liberdade no ser dada a si mesma. Cada um/a é senhor/a de si mesmo/a e das suas acções, autopossui-se, é dono/a de si e das suas acções, respondendo por elas: é responsável.
2. 1. Crise sanitária.
A pandemia colocou de modo violento à nossa frente “duas realidades iniludíveis da existência humana: a doença e a morte”. Perante elas, tomámos consciência mais aguda do valor e dignidade de cada vida humana. De facto, perante a morte, cada um/a é confrontado/a com o seu ser único, como revela aquele clamor dramático de Miguel de Unamuno frente à morte: “Ai que roubam o meu eu!” A doença e a morte lembram-nos também a necessidade e o direito ao cuidado: precisamos de ser cuidados e de cuidar. Aos responsáveis políticos e de governo impõe-se, portanto, o esforço para favorecer “o acesso universal à atenção sanitária de base”, não podendo ser só “a lógica do lucro” a guiar um sector tão delicado como decisivo.
Evidentemente, no imediato, é necessário assegurar “a distribuição equitativa das vacinas, que devem beneficiar toda a Humanidade”. Aqui, diria eu, até por uma imposição de um egoísmo esclarecido: de facto, dada a interdependência, enquanto não forem todos vacinados, estamos todos ameaçados, tanto mais quanto há o perigo de contínuas novas variantes do vírus. Ninguém é uma ilha; como escreveu John Donne, “a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte da Humanidade.”
2.2. Crise ambiental.
Percebemos agora melhor que não é apenas o ser humano que está doente, também o nosso planeta Terra está doente, e “a pandemia mostrou-nos mais uma vez a medida em que também é frágil e quanto precisa de cuidados.” Francisco espera que a próxima Conferência das Nações Unidas sobre o Clima (COP26), em Glasgow, em Novembro próximo, “permita chegar a um acordo efectivo para enfrentar as consequências das mudanças climáticas. Este é o momento de agir, pois já estamos a sentir os efeitos de uma prolongada inacção.”
2. 3. Crise económica e social.
A pandemia impôs restrições à circulação e confinamentos, que acabaram por provocar inevitavelmente uma terrível crise social e económica a nível global. Esta crise “é uma ocasião propícia para recolocar a relação entre a pessoa e a economia. É necessária uma espécie de “nova revolução copernicana” que ponha a economia ao serviço do Homem e não ao contrário, começando a estudar e a praticar uma economia diferente, “a que faz viver e não mata, que inclui e não exclui, que humaniza e não desumaniza, que cuida da criação e não se alimenta da depradação.”
Não se pode buscar soluções particulares para problemas que são globais. Neste sentido, o plano Next Generation EU é um bom exemplo de colaboração e solidariedade. “Que a conjuntura seja também um estímulo para perdoar ou pelo menos reduzir a dívida dos países mais pobres, que de facto impede a recuperação e o pleno desenvolvimento.”
(Continua)