"Colocando a pergunta pelo Absoluto enquanto pergunta pela justiça universal" O Homem: questão para si mesmo: As vítimas inocentes (XVI)

El Papa reza en la celda de Kolbe en Auschwitz durante su visita en 2016
El Papa reza en la celda de Kolbe en Auschwitz durante su visita en 2016 Vatican Media

"O que podem esperar as incontáveis vítimas inocentes da História? Quem lhes fará justiça?"

"E ergue-se um ateísmo moral precisamente por causa das injustiças do mundo e da História"

Quando olhamos para os horrores do mundo hoje, concretamente para a Ucrânia e o Médio Oriente, é o horror  pura e simplesmente, pensando concretamente nas vítimas inocentes. Mas não foi sempre assim? Veja-se Auschwitz. A gente vai lá e fica estarrecido. Bento XVI foi lá também e deixou estas palavras: Há “um silêncio que é um grito interior para Deus: Porque te calaste? Porque quiseste tolerar tudo isto? Onde estava Deus nesses dias? Porque se calou?”  

Ele deixou uma encíclica sobre a esperança — Spe salvi  —, e nela debruça-se sobre uma pergunta decisiva, “a pergunta fundamental da Filosofia” (Max Horkheimer) : o que podem esperar as incontáveis vítimas inocentes da História? Quem lhes fará justiça? Elas clamam, um grito ensurdecedor percorre a História.

‘Informe RD’ con análisis y el Documento Final del Sínodo

La vía del tren que conducía a Auschwitz
La vía del tren que conducía a Auschwitz Pixabay

E ergue-se um ateísmo moral precisamente por causa das injustiças do mundo e da História . “Um mundo no qual há tanta injustiça, tanto sofrimento dos inocentes e tanto cinismo do poder, não pode ser obra de um Deus bom”.  Quase se poderia dizer que se é ateu ad majorem Dei gloriam, para a maior glória de Deus, como se, perante o horror do mundo, a justificação de Deus fosse não existir. É-se ateu por causa de Deus. 

Afastado Deus, deve ser o Homem a estabelecer a justiça no mundo. Mas não será esta uma pretensão arrogante e intrinsecamente falsa? Quem não ouve o eco das palavras de Sófocles: Na terra “há muita coisa terrível, mas nada existe mais terrível do que o Homem”.  Tem, pois, razão Bento XVI, ao acrescentar: “Um mundo que tem de criar a sua justiça por si mesmo é um mundo sem esperança. Ninguém nem nada responde pelo sofrimento dos séculos”.

Aqui, ele lembra a Escola de Frankfurt, nomeadamente Max Horkheimer e Theodor Adorno, que viveram filosoficamente a inconsolável  “tristeza metafísica” da impossibilidade de fazer justiça às vítimas da História. De facto, mesmo supondo, no quadro do marxismo e da ideia do progresso moderno, que algum dia fosse possível erguer  uma sociedade finalmente justa, transparente e reconciliada, ela não poderia ser feliz, já que ou essa sociedade se lembrava de todas as vítimas do passado, que não participam dela, e seria atravessada pela infelicidade, ou não se interessava por elas e então não era humana, porque insolidária. 

 Horkheimer e Adorno exprimiram uma filosofia em tenaz: por um lado, não podiam acreditar num Deus justo e bom; por outro, há uma verdade da religião, apesar de todas as suas traições no conluio com o poder e os vencedores: a religião “no bom sentido” é, segundo Horkheimer, “o anelo inesgotável, sustentado contra a realidade fáctica, de que esta mude, que acabe o desterro e chegue a justiça”. Não se trata de um desejo egoísta, mas da esperança contrafáctica de que a realidade dominante da injustiça não tenha a última palavra.

Daí, o “anelo do totalmente Outro”, o “anelo da justiça universal cumprida”, “a esperança de que a injustiça que atravessa a História não permaneça, não tenha a última palavra”. E Adorno também escreveu  que, frente às aporias da razão, neste domínio, a única filosofia legítima seria “o intento de contemplar todas as coisas como aparecem à luz da redenção”. Embora se não possa afirmar nada para lá da imanência, a pergunta pela esperança truncada das vítimas, que acusam o mundo da história dos vencedores, obriga a pensar para lá dos limites da imanência, colocando a pergunta pelo Absoluto enquanto pergunta pela justiça universal.  

Etiquetas

Volver arriba