"A liberdade radica na experiência originária do ser humano como dom para si mesmo" O Homem: questão para si mesmo: Somos livres? (IV)
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"A liberdade não é desvinculável da experiência subjectiva, da “perspectiva interna”. Essa experiência é uma experiência transcendental, no sentido de que se afirma até na sua negação"
"Ser livre é propor-se ideais, deliberar e agir segundo razões e argumentos, impondo limites aos impulsos, inclinações e desejos, o que mostra que o Homem pode ser senhor dos seus actos"
| Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia
Esta é a pergunta decisiva. De facto, se não somos livres, o que se chama dignidade humana pode ser uma convenção, mas não tem fundamento real.
Mas quem nunca foi assaltado pela pergunta: a minha vida teria podido ser diferente? Para sabê-lo cientificamente, seria preciso o que não é de modo nenhum possível: repetir a vida exactamente nas mesmas circunstâncias. Só assim se verificaria se as “escolhas” se repetiam nos mesmos termos ou não.
Não há dúvida de que a liberdade humana é condicionada. Mas ela existe ou é uma ilusão? Não pretendem agora neurocientistas dizer que, mediante dados da tomografia de emissão de positrões e da ressonância magnética nuclear funcional, se mostra que afinal as nossas decisões são dirigidas por processos neuronais inconscientes?
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De qualquer modo, já em 2004, destacados neurocientistas também tornaram público um “Manifesto sobre o presente e o futuro da investigação do cérebro” – cito Hans Küng, no seu Der Anfang aller Dinge (O princípio de todas as coisas) --, revelando-se prudentes no que toca às “grandes perguntas”: “Como surgem a consciência e a vivência do eu? Como se entrelaçam a acção racional e a acção emocional? Que valor se deve conceder à ideia de ‘livre arbítrio’? Colocar já hoje as grandes perguntas das neurociências é legítimo, mas pensar que terão resposta nos próximos dez anos é muito pouco realista.”
É preciso continuar as investigações, no sentido de perceber o nexo entre a mente e o cérebro. “Mas nenhum progresso terminará num triunfo do reducionismo neuronal. Mesmo que alguma vez chegássemos a explicar a totalidade dos processos neuronais subjacentes à simpatia que o ser humano pode sentir pelos seus congéneres, ao seu enamoramento e à sua responsabilidade moral, a autonomia da ‘perspectiva interna’ permaneceria intacta. Pois também uma fuga de Bach não perde nada do seu fascínio, quando se compreende com exactidão como está construída.”
A liberdade não é desvinculável da experiência subjectiva, da “perspectiva interna”. Essa experiência é uma experiência transcendental, no sentido de que se afirma até na sua negação. De facto, se tudo se movesse no quadro do determinismo total, como surgiria o debate sobre a liberdade? Ele seria possível?
Essa experiência coloca-se concretamente no campo da moral e da responsabilidade. Neste contexto, há um célebre exercício mental de Kant na Crítica da Razão Prática, que já aqui citei e que é elucidativo e obriga a pensar. Suponhamos que alguém, sob pena de morte imediata, se vê confrontado com a ordem de levantar um falso testemunho contra uma pessoa que sabe ser inocente. Nessas circunstâncias e por muito grande que seja o seu amor à vida, pensará que é possível resistir. “Talvez não se atreva a assegurar que assim faria, no caso de isso realmente acontecer; mas não terá outro remédio senão aceitar sem hesitações que tem essa possibilidade.” Existem as duas possibilidades: resistir ou não. “Julga, portanto, que é capaz de fazer algo, pois é consciente de que deve moralmente fazê-lo e, desse modo, descobre em si a liberdade que, sem a lei moral, lhe teria passado despercebida.”
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O que confunde frequentemente o debate é a falta de esclarecimento quanto ao que é realmente a liberdade. Ela é a não submissão à necessidade coactiva, externa e interna, mas não pode, por outro lado, ser confundida com a arbitrariedade e a pura espontaneidade – não implica a espontaneidade a necessidade?
A liberdade radica na experiência originária do ser humano como dom para si mesmo. Paradoxalmente, é na abertura a tudo, portanto, no horizonte da totalidade do ser, que ele vem a si mesmo como eu único e senhor de si. Então, agir livremente é a capacidade de erguer-se acima dos próprios interesses, para pôr-se no lugar do outro e agir racionalmente. Faço a experiência de que sou dado a mim próprio como senhor de mim; portanto, sou dono de mim (já ouvi uma criança de seis anos dizer à mãe: “tu não és a minha dona”) e, portanto, dono dos meus actos e, consequentemente responsável, respondo por eles e por mim.
É preciso distinguir entre causas e razões. Quando se age sob uma causalidade constringente, não há liberdade. Ser livre é propor-se ideais, deliberar e agir segundo razões e argumentos, impondo limites aos impulsos, inclinações e desejos, o que mostra que o Homem pode ser senhor dos seus actos e, assim, responsável, pode e deve responder por eles.
Só existe liberdade, se há alguém capaz de autodeterminação. A determinação por um “eu”, segundo um juízo de valor, é que faz com que uma acção seja livre e não puro acaso ou enquadrada no determinismo das leis naturais. Como diz P. Bieri – ver de novo citação em O princípio de todas as coisas --, “é inútil procurar na textura material de um quadro o representado ou a sua beleza; é igualmente inútil procurar na mecânica neurobiológica do cérebro a liberdade ou a sua ausência. Ali, não há nem liberdade nem falta de liberdade. Do ponto de vista lógico, o cérebro não é o lugar adequado para esta ideia. A vontade é livre, se se submete ao nosso juízo sobre o que é adequado querer em cada momento. A vontade carece de liberdade, quando juízo e vontade seguem caminhos divergentes.”
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Quando se pensa em profundidade e verdade, ser Homem é ser livre e, consequentemente, responsável: responder por si e pelos outros. O que quero fazer de mim? Para onde queremos ir verdadeiramente?
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