"O Homem é capaz de renunciar à satisfação imediata dos seus impulsos" O Homem: questão para si mesmo: O que sou? Quem sou? (II)
"Os grandes espíritos -- Diderot, por exemplo – deram-se conta de que o que somos não pode ser encerrado numa definição"
"Também o Homem é corpo, mas um corpo que fala e que diz eu"
"A tentativa de compreendê-lo no quadro de um materialismo mecanicista ou do biologismo não dá conta do Homem"
"Uma vez que o Homem é capaz de ponderar, renunciar, abster-se, optar, dizer sim, dizer não aos impulsos, é livre e, por conseguinte, animal moral"
"A tentativa de compreendê-lo no quadro de um materialismo mecanicista ou do biologismo não dá conta do Homem"
"Uma vez que o Homem é capaz de ponderar, renunciar, abster-se, optar, dizer sim, dizer não aos impulsos, é livre e, por conseguinte, animal moral"
| Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia
O que é o Homem?
Ao longo dos séculos, foram-se sucedendo, numa lista quase interminável, as tentativas de resposta: animal que fala, animal político (Aristóteles); animal racional (os estóicos e a Escolástica); realidade sagrada (Séneca); um ser que pensa (Descartes); uma cana pensante (Pascal); um ser que trabalha (Marx); um animal capaz de prometer (Nietzsche); um ser que cria (Bergson); um animal que ri, um animal que chora, um animal que sepulta os mortos... Saído da gigantesca aventura cósmica com uns 14.000 milhões de anos, o Homem tem, segundo Edgar Morin, “a singularidade de ser cerebralmente sapiens-demens” (sapiente-demente), ter, portanto, com ele “ao mesmo tempo a racionalidade, o delírio, a hybris (a desmesura), a destrutividade”.
Também o filósofo André Comte-Sponville apresentou a sua “definição”, que julga suficiente: “É um ser humano qualquer ser nascido de dois seres humanos.” Mas será mesmo suficiente? O que dizer em relação aos primeiros seres humanos que, na história da evolução, não nasceram de outros humanos? Esta é uma questão assombrosa: sim, quem foram os primeiros e como é que foram tomando consciência de si? Nunca se saberá quem foi o primeiro que disse “eu”. E se amanhã se der a clonagem e a partenogénese?
Os grandes espíritos -- Diderot, por exemplo – deram-se conta de que o que somos não pode ser encerrado numa definição. O Homem é o ser que leva consigo a questão do ser e do seu ser e que originária e constitutivamente pergunta: o que é o Homem? O que, antes de mais, une a Humanidade toda é precisamente esta pergunta: o que é o Homem, o que é ser ser humano?
Se o chimpanzé, por exemplo, também sente, recorda, procura, espera, joga, comunica, aprende e inventa, o que é que nos distingue? Parece estender-se cada vez mais a tentação de pensar que o Homem é um animal entre outros. Se diferença houvesse, não seria essencial e qualitativa, mas apenas de grau. Mas quem anda atento reconhecerá com certeza que a diferença entre o Homem e os outros animais não é apenas de grau, mas essencial e qualitativa. Pelo menos, é preciso manter a pergunta.
Também o Homem é corpo, mas um corpo que fala e que diz eu. Ora, um corpo que produz sons duplamente articulados, portanto, transportando sentido, é um corpo que transcende a animalidade.
O Homem é capaz de renunciar à satisfação imediata dos seus impulsos: é “o asceta da vida”, escreveu Max Scheler. Por isso, é capaz de jejuar e ergueu, por exemplo, um edifício jurídico-penal, para evitar a vingança cega, dirimir diferendos, não fazer justiça pelas próprias mãos.
Quando vemos um animal sentado, de olhos fechados, com a cabeça entre as mãos, estamos em presença de um Homem que pensa e medita. Está ensimesmado, entrou dentro de si próprio, desceu à sua intimidade, submerso na sua subjectividade pessoal.
Afinal, há muito de idêntico em nós e no chimpanzé, “no mono e no Papa”, disse ironicamente o filósofo confessadamente ateu Michel Onfray. O professor de filosofia e o chimpanzé têm necessidades naturais comuns: comer, beber, dormir. A etologia mostra que há comportamentos naturais comuns aos animais e aos humanos. Veja-se, por exemplo, as relações de violência e de agressão e compare-se inclusivamente os rituais de cortejamento sexual. Mas é interessante constatar que já na resposta às necessidades naturais há uma diferença: os homens inventaram a cozinha e a gastronomia e também o erotismo.
M. Onfray acrescenta: “O Homem e o animal separam-se radicalmente quando se trata de necessidades espirituais, as únicas que são próprias dos homens e das quais não se encontra nenhum vestígio – mínimo que seja – nos animais.” Há nos humanos uma série de actividades especificamente intelectuais, que os distinguem radicalmente dos monos: nestes, não encontramos filosofia nem religião nem arte...
A tentativa de compreendê-lo no quadro de um materialismo mecanicista ou do biologismo não dá conta do Homem. De facto, o animal é conduzido, em última análise, pelo instinto. Por isso, esfomeado, não se conterá perante a comida apropriada que lhe apareça. Face à fêmea no período do cio, não resistirá. O Homem, pelo contrário, é capaz de transcender a dinâmica biológica. Por motivos de ascese ou religiosos ou até pura e simplesmente para mostrar a si próprio que se não deixa arrastar pelo impulso, é capaz de conter-se, resistir, dizer não. Foi neste sentido que, repito, Max Scheler, um dos fundadores da Antropologia Filosófica, escreveu que o Homem é “o asceta da vida”, o único animal capaz de dizer não aos impulsos instintivos.
Esta é a base biológica da conduta moral, uma característica essencialmente específica humana. Uma vez que o Homem é capaz de ponderar, renunciar, abster-se, optar, dizer sim, dizer não aos impulsos, é livre e, por conseguinte, animal moral.
O Homem é corpo, mas um corpo que fala. Porque fala, é capaz de debater questões como a da diferença com os outros animais, defender pontos de vista, distinguir o bem e o mal, tomar posições sobre valores morais, políticos, religiosos, estéticos, filosóficos.
Então, o enigma é este: provimos da natureza, mas contrapomo-nos a ela, somos simultaneamente da natureza, na natureza e fora dela. Monos e humanos têm a mesma origem, mas os humanos têm originalidades únicas e irredutíveis.
O Homem é o ser da pergunta e a pergunta por si mesmo caracteriza-o: O que é o Homem? O que sou? Quem sou?