Sobre unha entrevista com o Pablo D'Ors Religião e espiritualidade
"Pablo D’Ors publicou um livro célebre do qual se venderam já mais de 150.000 exemplares, com o título Biografia do Silêncio"
"A chave para entender a crise da religião e perceber a conversão de que a Igreja urgentemente precisa para ser o que Jesus quer"
1. Não haja dúvidas. A religião, concretamente na Europa, também entre nós, está em queda. O número de agnósticos e ateus aumenta, para não falar na chamada “prática religiosa”, que desce a olhos vistos. O padre José Antonio Pagola escreveu recentemente um texto subordinado ao título: “Depois de séculos de ‘imperialismo cristão’, os discípulos de Jesus têm de aprender a viver em minoria.”
Significa isto o triunfo do materialismo crasso ou o que está em causa é mesmo a religião institucional, mas não a espiritualidade? O que é facto é que tenho encontrado cada vez mais grupos interessados na espiritualidade e no aprofundamento da vida interior. Multiplicam-se esses grupos e também a bibliografia sobre o tema. Por exemplo, com sucesso escreveu recentemente o teólogo Francesc Torralba uma obra: La interioridad habitada, onde se pode ler: “A educação da interioridade não é, em caso algum, um luxo nem uma questão menor, pois tem como objectivo final o cuidar de si mesmo, e, para isso, desenvolver todas as potencialidades latentes no ser humano, como a memória, a imaginação, a vontade, a inteligência e a emotividade, mas também o fundo último do seu ser: a espiritualidade, admitindo que esta pode adquirir formas, expressões e modos muito diversos em virtude dos contextos educativos e dos momentos históricos. No modelo da interioridade habitada reconhecem-se dois magistérios: o exercício do mestre humano que fala e actua a partir de fora e o do Mestre interior que habita lá no íntimo.”
2. Hoje, quero referir-me concretamente a Pablo D’Ors, padre e escritor. Numa recente entrevista a José Manuel Vidal, Director de Religión Digital, disse: “As formas tradicionais da Igreja não respondem à sensibilidade e à linguagem contemporâneas”. Numa outra entrevista, a “La Razón”, declarou: “Boa parte do descrédito da Igreja deve-se a ela sucumbir ao ritualismo”. Pablo D’Ors publicou um livro célebre do qual se venderam já mais de 150.000 exemplares, com o título Biografia do Silêncio. E é o fundador da associação “Amigos do Deserto”, que conta com uma rede de meditadores com mais de 500 membros, porque, como afirmou: “Há uma ânsia espiritual muito grande nesta sociedade secularizada.” Deixo aí, a partir destas duas entrevistas, pensamentos que julgo ser urgente meditar.
Porque é que o livro teve tanto sucesso? “Uma das razões do êxito é precisamente a sua oportunidade. Surgiu num momento em que aumentava claramente o interesse pela meditação. O seu prestígio construiu-se sobre o desprestígio da religião. O facto de muitas pessoas terem abandonado as formas religiosas não quer dizer que a sua sede espiritual esteja saciada ou se tenha anulado. Persiste e é preciso procurar novas formas de alimentá-la. A meditação é uma delas. Costumo dizer que a religião é o copo e a espiritualidade é o vinho, e o que nos sacia verdadeiramente é o vinho. A religião tem de estar ao serviço de suscitar a experiência espiritual, e nós, os cristãos, contentámo-nos com o copo. As formas, para ir ao fundo da questão, deixaram de ser formas para o conteúdo e encerraram-se em si mesmas. O mal não está no rito, mas no ritualismo. As pessoas não sentem que isso as alimente. A isto junta-se que a linguagem tanto verbal como gestual do cristianismo não responde à sensibilidade nem à cultura contemporâneas.”
Não podemos esquecer que tão importantes como o património que recebemos, o Evangelho, são o homem e a mulher de hoje. Por isso, “a nossa fidelidade não é só ao Evangelho, é a este homem e a esta mulher de hoje. Se estivermos longe deles, dificilmente entramos em relação.” Impõe-se que se perceba que “as formas têm que estar ao serviço do fundo, e muitas vezes as formas perdem-nos, pois ficamos no formalismo e privamo-nos de ir ao núcleo da questão. Qual é a urgência fundamental para a Igreja de hoje? Uma renovação espiritual; que estejamos verdadeiramente no nosso centro.”
Para Pablo D’Ors, o silenciamento interior é uma necessidade de primeira ordem. “A meditação é uma prática de silenciamento e quietude. É um trabalho que se faz com o corpo e com a mente e cujo propósito fundamental é o autoconhecimento.” Quando muitas coisas exteriores se foram afundando, ele descobriu a aventura interior, que é um processo de higiene da mente e do coração: “Normalmente temos uma grande confusão intelectual e sentimental. Criámos uma cultura da exterioridade, representada fundamentalmente pelo telemóvel. Quanto maior conexão fora, menor conexão dentro. Perde-se a dimensão interior, porque a nossa cultura nos impulsiona e estimula para estar sempre fora.” Então, nas crises existenciais, as pessoas ficam desamparadas por dentro, pois nem sequer sabem se há “um dentro”. Por isso, “boa parte do êxito de muitas escolas de meditação radica nesta busca. Hoje, não falamos tanto de espiritualidade como de interioridade, que é o modo laico de dizer o mesmo.”
Precisamos de arrumar o nosso interior, para que haja mais espaço, pois, desse modo, distinguimos melhor. É como quando numa casa repleta de coisas começas a tirar o não necessário e começas a ver. Daí surge, paradoxalmente, o segundo fruto: a humildade. “Saber quem és, ter uma visão realista de ti mesmo, essa humildade, esse saber qual é o teu lugar, isso é o que te dá a paz interior.”
Pergunta-se se não há o perigo de estas correntes de espiritualidade serem um pouco individualistas, egocêntricas, ignorando a transformação do mundo. Responde: “Creio que a meditação autêntica não se afasta de Deus. Mesmo que isso se não verbalize de maneira explícita. Quem verdadeiramente se conhece a si mesmo, mais cedo ou mais tarde, aponta para o mistério. Esse mistério poderá chamá-lo Deus ou não, mas Ele está lá. Em ti gerou-se uma atitude espiritual.” Quanto à denúncia e ao compromisso com a mudança das estruturas: Sim, há o perigo de grupos espirituais caírem num espiritualismo desencarnado, mas a questão é de prioridades: “A justiça social, a denúncia, tudo isso, vem por acréscimo, é o fruto de estarmos centrados. Primeiro, vamos transformando a nossa própria vida. A oração, o nosso próprio espírito transforma-nos e, simultaneamente, vai transformando a vida à nossa volta, a vida familiar, a vida social, a vida do bairro. A vida da Nação.”
Deve-se prescindir das religiões? De modo algum. “O ‘mindfulness’ não é puramente laico, mesmo que os termos e as práticas se apresentem numa linguagem puramente secular. Isto é o que, modestamente, os “Amigos do Deserto” e eu queremos fazer com o cristianismo. Que seja uma tradução secular, para o mundo de hoje, da mensagem cristã. Para o Ocidente, a figura de Cristo é muito mais próxima do que a de Buda, e por isso o salto cultural que é preciso dar para ser meditador cristão é muito menor. Julgo que prescindir das religiões é um suicídio, porque isso significaria prescindir do nosso passado. Ora, quem prescinde do seu passado não sabe qual é o seu presente.” Não, não há o perigo de obsessão pelo “aqui e agora”. Porque “o sublinhado no presente não deveria fazer-nos perder de vista a importância do passado e do futuro. Recordar é passar a história pelo coração e ajuda-nos a compreender quem somos. Uma árvore sem raiz não se aguenta, o passado é a nossa raiz e é preciso cuidar dela. O mesmo digo do futuro. O homem não é sem projecção e projecto de si. A espiritualidade cristã sempre sublinhou o futuro, o horizonte, e a budista, o presente. Penso que estamos num tempo de síntese.”
A propósito, como se relacionam em Pablo D’Ors “o ego do escritor e o ‘não-ego’ do meditador?” “Devo dizer que para mim silêncio e palavra são duas faces da mesma moeda. O segredo da palavra é o silêncio e o do silêncio, a palavra. Uma palavra nasce matinal no coração do leitor na medida em que foi preparada no silêncio. Para que a palavra seja fecunda, tem de nascer do silêncio. Com o tempo, fui descobrindo que a minha dupla vocação, sacerdotal e literária, é a mesma.”
Então, não existe realmente o perigo maior, que consiste em ficar encerrado em si mesmo, no egocentrismo? “O ego (o eu), que não é outra coisa senão a tendência para auto-afirmar-se, é necessário para viver. Não se trata de matar o ego, mas de colocá-lo no seu lugar.” Por isso, quanto a escutar-se a si mesmo ou escutar o outro, “é como perguntar o que é que é mais complicado: amar-se a si mesmo ou aos outros. É exactamente a mesma coisa. Por isso digo que a meditação é uma escola de escuta. Se aprenderes a escutar-te a ti mesmo poderás escutar os outros. Ninguém pode dar o que não tem.” Quanto ao egocentrismo: “Eu vejo-me agora a mim mesmo menos egocêntrico do que há uns anos. Mais magnânimo, com a alma maior. O critério para verificar que um caminho de meditação é autêntico é se te torna mais compassivo, mais justo e caritativo. Se o outro tem um papel mais importante na tua vida. A meditação corre o risco de perverter-te, se esquece a dimensão transcendente e se fica pela busca utilitarista de benefícios pessoais.”
O jornalista: “Chama-me a atenção que diga que é mais importante ser si mesmo do que alguém ‘bom’.” Pablo D’Ors: “Refiro-me a que o essencial é o indicativo da graça e não o imperativo moral. O decisivo para a construção de uma pessoa é experienciar o que é, e, na medida em que o fizer, comportar-se-á de uma maneira ou outra. Não temos de estar tão preocupados em ser bons, pela dimensão moral, como pela metafísica do ser. Sermos quem estamos chamados a ser. Se o formos, se na verdade fores tu, serás bom.” Objecção: “Haverá gente que seja ela mesma e seja egoísta.”
Resposta: “Isso baseia-se numa visão do mundo, que é a minha, segundo a qual a luta entre a luz e a sombra não é paritária. O que há fundamentalmente é luz. Este ponto de partida não é subjectivo, é contrastável. Por exemplo, se contares quantos comboios descarrilaram hoje no mundo e quantos chegaram ao destino verás que a imensa maioria chegou bem. Se fizermos o mesmo com tudo, vemos que o bem é significativamente mais. O que acontece é que os meios de comunicação social fazem-nos crer que o que existe é o mal, quando é o contrário. É como o céu e as nuvens: as nuvens podem tapar o céu, mas o que na realidade há é um céu. Estamos bem feitos.” Neste contexto, sobre a sua vocação: “Aos 18 anos. É como quando alguém se enamora e sabe que é a pessoa adequada quando a conhece. Foi uma experiência de encontro com o mistério, com a graça de Jesus Cristo. É uma sedução, um fascínio, um sentir que é o eixo vertebrador da tua vida, que lhe dá sentido, força. Foi a experiência do entusiasmo. Estar habitado pelos deuses, pelo espírito. A experiência de que havia algo substancial que tudo sustenta. Dessa experiência, a mais decisiva da minha vida, nunca duvidei.”
Qual é então o sentido da vida? “Redimir o mundo. Colocar luz onde há trevas, amor onde há desamor, esperança onde há inesperança e desespero, claridade na dúvida. Na medida em que fizermos isso, estamos bem e semeamos o bem.”
3. Está aí, bem à vista, a chave para entender a crise da religião e perceber a conversão de que a Igreja urgentemente precisa para ser o que Jesus quer. Ele passava noites na montanha a rezar e fez a experiência inexcedível do mistério de Deus como Abbá, Papá, querida Mamã. A consequência: amou a todos, por palavras e obras, a começar por aqueles e aquelas que ninguém ama, porque Deus é o sentido último da existência, não caminhamos para o nada, porque Deus é Amor. Tomás Muro disse-o, numa síntese perfeita: “O fundamento da religião é o medo. O fundamento do cristianismo é o amor”.