Amoris laetitia
«O caminho sinodal permitiu analisar a situação das famílias no mundo atual, alargar a nossa perspetiva e reavivar a nossa consciência sobre a importância do matrimónio e da família» (AL, 2). Com estas três notas, o Papa Francisco carateriza a reflexão eclesial entretanto feita: analisar a situação, alargar a perspetiva e reavivar a consciência. E assim realmente aconteceu, pois foram muitos os contributos de testemunho e análise para melhor compreendermos o que se passa, várias as perspetivas geográficas e culturais que se interligaram e reforçada saiu a consciência eclesial sobre a importância decisiva da nossa primeira e indispensável agregação social e eclesial – precisamente a família.
Este mesmo conjunto de perspetivas e análises requereu, de uma para outra assembleia sinodal, o maior aprofundamento das questões e das soluções, como é próprio da tradição viva em que a Igreja lê evangelicamente os sinais dos tempos e lhes procura corresponder, tão idêntica como atualmente. Identidade e atualidade que, conjugadas, evitarão os dois escolhos da descaraterização ou do passadismo (cf. Ibidem).
A leitura dos sinais só biblicamente pode ser feita. Os relatórios das duas assembleias e a própria exortação apostólica dão-nos conta disto mesmo, sobretudo ao sublinhar o caráter existencial da revelação, que inclui a família, o seu valor, o seu drama e redenção. Na verdade, «a Palavra de Deus não se apresenta como uma sequência de teses abstratas, mas como uma companheira de viagem, mesmo para as famílias que estão em crise ou imersas nalguma tribulação, mostrando-lhes a meta do caminho, quando Deus “enxugar todas as lágrimas dos seus olhos, e não houver mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor” (Ap 21, 4)» (AL, 22). As meditações bíblicas presentes na exortação apostólica constituem um notável contributo para a catequese e a pastoral familiar, como havemos de aproveitar.
«Ninguém pode pensar que o enfraquecimento da família como sociedade natural fundada no matrimónio seja algo que beneficia a sociedade» (AL, 52). Creio ser esta a grande preocupação do Papa Francisco e mesmo a razão principal que o levou a convocar as assembleias sinodais que estão na base da presente exortação apostólica. Está convicto de que «nenhuma união precária ou fechada à transmissão da vida garante o futuro da sociedade» (Ibidem).
Encontra no próprio amor humano, quando autêntico, o sinal e o apelo da respetiva perenidade, como escreve mais adiante: «Sejamos sinceros na leitura dos sinais da realidade: quem está enamorado não projeta que essa relação possa ser apenas por um certo tempo; […] os filhos querem não só que os seus pais se amem, mas também sejam fiéis e permaneçam sempre juntos. Estes e outros sinais mostram que, na própria natureza do amor conjugal, existe a abertura ao definitivo» (AL, 123).
Daqui que a preparação e o acompanhamento do matrimónio devem revelar a sua coincidência com o que há de mais profundo em quem ama e vai amando, sem ilusão nem desistência: «Tanto a preparação próxima como o acompanhamento mais prolongado devem procurar que os noivos não considerem o matrimónio como o fim do caminho, mas o assumam como uma vocação que os lança para diante, com a decisão firme e realista de atravessarem juntos todas as provações e momentos difíceis» (AL, 211).
Nesta ordem de ideias, o Papa Francisco escreve mesmo que o “vínculo” carateriza tanto a pastoral como a espiritualidade do matrimónio: «Tanto a pastoral pré-matrimonial como a matrimonial devem ser, antes de mais nada, uma pastoral do vínculo, na qual se ofereçam elementos que ajudem quer a amadurecer o amor quer a superar os momentos duros» (AL, 211). E no final da exortação: «Em suma, a espiritualidade matrimonial é uma espiritualidade do vínculo habitado pelo amor divino» (AL, 315).
«A Igreja é família de famílias, constantemente enriquecida pela vida de todas as Igrejas domésticas. Assim, “em virtude do sacramento do Matrimónio, cada família torna-se, para todos os efeitos, um bem para a Igreja” (Relatio Finalis 2015, 52)» (AL, 87). Esta afirmação deverá obter grande consequência na vida das nossas comunidades, paroquiais e outras. Significa, por exemplo, que antes de contar os fiéis presentes e ausentes, habituais ou ocasionais, devemos perguntar-nos pelas realidades familiares que constituem a rede e o suporte da nossa vida comunitária. Se a Igreja se alarga na familiaridade geral de todos os filhos de Deus, a vida familiar oferece à comunidade cristã a solidariedade básica da casa de cada um. Daqui a conclusão e a mútua responsabilidade: «“ a Igreja é um bem para a família, a família é um bem para a Igreja. A salvaguarda deste dom sacramental do Senhor compete não só à família individual, mas a toda a comunidade cristã”» (Ibidem).
A experiência atual de milhares de famílias em missão, demonstrando na prática a potencialidade do sacramento que as origina, é deveras convincente e criativa, em termos de evangelização e nova evangelização, longe ou perto, indo a outro continente ou a outro andar do mesmo prédio em que habitam: «Com o testemunho e, também, com a palavra, as famílias falam de Jesus aos outros, transmitem a fé, despertam o desejo de Deus e mostram a beleza do Evangelho e do estilo de vida que nos propõe. Assim os esposos cristãos pintam o cinzento do espaço público, colorindo-o de fraternidade, sensibilidade social, defesa das pessoas frágeis, fé luminosa, esperança ativa. A sua fecundidade alarga-se, traduzindo-se em mil e uma maneiras de tornar o amor de Deus presente na sociedade» (AL, 184).
E tão relevante se torna este facto, que as famílias tomam a primazia pastoral no que lhes é próprio: «Os Padres sinodais insistiram no facto de que as famílias cristãs são, pela graça do sacramento nupcial, os sujeitos principais da pastoral familiar, sobretudo oferecendo “o testemunho jubiloso dos cônjuges e das famílias, igrejas domésticas” (Relatio Synodi 2014, 30)» (AL, 200).
No Sínodo foi também realçada a importância catequética da família, dos pais em relação aos filhos e não só: «… a família deve continuar a ser lugar onde se ensina a perceber as razões e a beleza da fé, a rezar e a servir o próximo. […] Por isso, “tenha-se o cuidado de valorizar os casais, as mães e os pais, como sujeitos ativos da catequese […]. De grande ajuda é a catequese familiar, enquanto método eficaz para formar os pais jovens e torná-los conscientes da sua missão como evangelizadores da sua própria família” (Relatio Finalis 2015, 89)» (AL, 287).
«Acolho as considerações de muitos Padres sinodais que quiseram afirmar que “os batizados que se divorciaram e voltaram a casar civilmente devem ser mais integrados na comunidade cristã sob as diferentes formas possíveis, evitando toda a ocasião de escândalo” (Relatio Finalis 2015, 84)» (AL, 299). Como é sabido, este ponto teve referência prioritária nos media, como já a tivera antes e durante as assembleias sinodais.
Se tivermos bem presentes duas exortações apostólicas pós-sinodais anteriores – Familiaris Consortio, nº 84, de João Paulo II, e Sacramentum Caritatis, nº 29, de Bento XVI – nem esta nem outras afirmações decorrentes nos trazem novidade substancial: discernimento das situações e das responsabilidades, distinção entre objetivo e subjetivo, gradualidade, participação na vida comunitária, de tudo isto nos dão conta os textos dos Papas Wojtyla e Ratzinger. Entretanto, a integração de todos e tanto quanto possa ser é uma das insistências maiores do atual pontificado, em grande correspondência à misericórdia divina e aos dramas duma sociedade tão desintegrada como a atual. Daqui a insistência do Papa Francisco, em relação a estas situações: «A lógica da integração é a chave do seu acompanhamento pastoral […]. São batizados, são irmãos e irmãs, o Espírito Santo derrama neles dons e carismas para o bem de todos. A sua participação pode exprimir-se em diferentes serviços eclesiais, sendo necessário, por isso, discernir quais as diferentes formas de exclusão atualmente praticadas em âmbito litúrgico, pastoral, educativo e institucional possam ser superadas” (Relatio Finalis 2015, 84)» (AL, 299). Reparemos que, neste elenco das exclusões a rever, não se mencionam as sacramentais.
Na verdade, o Papa não dá novas normas, antes reforça as exigências de discernimento já indicadas pelos seus antecessores: «… é compreensível que se não devia esperar do Sínodo ou desta Exortação uma nova normativa geral de tipo canónico, aplicável a todos os casos. É possível apenas um novo encorajamento e um responsável discernimento pessoal e pastoral dos casos particulares, que deveria reconhecer: uma vez que “o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos” (Relatio Finalis 2015, 84), as consequências ou efeitos duma norma não devem necessariamente ser sempre os mesmos. Os sacerdotes têm o dever de “acompanhar as pessoas interessadas pelo caminho do discernimento segundo a doutrina da Igreja e as orientações do bispo” (Ibidem, 85)» (AL, 300).
Evitando qualquer arbitrariedade no acompanhamento pastoral dos casos concretos, em que hão de prevalecer «a humildade, a privacidade, o amor à Igreja e à sua doutrina, a busca sincera da vontade de Deus». Na verdade, «estas atitudes são fundamentais para evitar o grave risco de mensagens equivocadas, como a ideia de que algum sacerdote pode conceder rapidamente “exceções”, ou de que há pessoas que podem obter privilégios sacramentais em troca de favores» (AL, 300).
O Papa Francisco retoma a já conhecida distinção entre objetividade e subjetividade, nos seguintes termos: «Por causa dos condicionalismos ou dos fatores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma situação objetiva de pecado – mas [que] subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente -, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja» (AL, 305). E especifica na nota 351: «Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos. Por isso “aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor” (Evangelii gaudium, 44). E de igual modo assinalo que a Eucaristia “não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos” (Ibidem, 47)».
Para compreendermos melhor o que possa acontecer no âmbito da Penitência e da Eucaristia – certamente mais vasto do que a absolvição e a comunhão propriamente ditas – atendamos, para já, ao recente conselho do Papa: «Tenho de dizer aos confessores: falem, ouçam pacientemente e acima de tudo digam às pessoas que Deus quer o seu bem. E se o confessor não pode absolver, que explique porquê, mas que não deixe de dar uma bênção, mesmo sem absolvição sacramental. O amor de Deus também existe para quem não está disponível para receber o sacramento» (Francisco, O nome de Deus é Misericórdia, Lisboa, Planeta, 2015, p. 33). Sem esquecer a possibilidade já prevista de acesso aos sacramentos por parte de recasados plenamente continentes, ou a crescente verificação da validade ou nulidade dos matrimónios, cumprindo as determinações do Código de Direito Canónico e do Motu Proprio Mitis Iudex Dominus Iesus, de 15 de agosto de 2015.
Concluindo: A intenção prevalecente do Papa Francisco é propor o matrimónio cristão, realmente possível com a graça divina: «Para evitar qualquer interpretação tendenciosa, lembro que, de modo algum, deve a Igreja renunciar a propor o ideal pleno do matrimónio, o projeto de Deus em toda a sua grandeza: “É preciso encorajar os jovens batizados para não hesitarem perante a riqueza que o sacramento do Matrimónio oferece aos seus projetos de amor, com a força do apoio que recebem da graça de Cristo e da possibilidade de participar plenamente da vida da Igreja” (Relatio Synodi 2014, 26). […] Hoje, mais importante do que uma pastoral dos falhanços é o esforço pastoral para consolidar os matrimónios e assim evitar as ruturas» (AL, 307).
+ Manuel Clemente