O último tabu Desconfinados e desmascarados (II)

Desconfinados e desmascarados (II)
Desconfinados e desmascarados (II)

A crónica de hoje, tenta ser uma breve reflexão sobre outras máscaras e a necessidade do desmascaramento, outro desmascaramento

O desmascaramento é particularmente urgente numa sociedade como a nossa: sociedade do parecer, da pós-verdade, do espectáculo e, por isso, da mentira e da ilusão

Quem esperava esta pandemia? Foi e é preciso colocar uma máscara, porque a covid-19 nos desmascarou quanto à nossa pretensa omnipotência

E fomos obrigados, inevitavelmente, a pensar. Porque é a morte, o impensável, que obriga a pensar no essencial: o que é morrer?, o que é estar morto?, para onde vão os mortos?

A morte desmascara e obriga a tirar as máscaras do parecer, da hipocrisia, da mentira, do medo de dizer a verdade, da cobardia, da competição feroz, das vaidades do ter e do poder pelo poder...

Nas nossas sociedades tecnocientíficas e citadinas, a morte tornou-se tabu, o último tabu. Mas, ao perder o sentido da morte, perde-se o sentido da vida e o sentido da filosofia e da religião. E perde-se também o sentido ético

Na crónica anterior, tentei reflectir sobre o desconfinamento. A crónica de hoje, que não põe de modo nenhum em causa a importância do uso da máscara no contexto da pandemia, tenta ser uma breve reflexão sobre outras máscaras e a necessidade do desmascaramento, outro desmascaramento. Não se dedica a um estudo aprofundado sobre a história e a riqueza cultural da máscara, desde as máscaras das divindades e dos guerreiros, passando pelo teatro, até aos bailes de máscaras e aos carnavais. Aqui, é aquela máscara que colocamos, umas vezes inconscientemente outras conscientemente, para parecermos o que realmente não somos, enganarmos os outros e enganarmo-nos a nós próprios. Temos medo e vergonha de nós, do que verdadeiramente somos? O desmascaramento é particularmente urgente numa sociedade como a nossa: sociedade do parecer, da pós-verdade, do espectáculo e, por isso, da mentira e da ilusão.

Quem esperava esta pandemia? Um vírus invisível chegou e invadiu o planeta e atingiu a Humanidade inteira. E foi preciso fazer uma pausa, e tudo o que parecia inadiável ficou parado, para depois, para quando for possível. Afinal, quais são as prioridades? Foi e é preciso colocar uma máscara, porque a covid-19 nos desmascarou quanto à nossa pretensa omnipotência. Afinal, não somos omnipotentes nem imortais. Fomos desmascarados. Como disse o filósofo Nicolas Grimaldi, “trata-se de um acontecimento natural como pode sê-lo um tremor de terra. Isso teria interessado a Pascal: como é que um infinitamente pequeno como um vírus pode produzir efeitos tão imensos? A Humanidade toma consciência da sua universalidade ao tomar consciência da sua mortalidade, da sua precariedade, em toda a parte no mundo, no mesmo momento. De repente, é-nos lembrado: é igual em toda a parte, porque vamos morrer.” E fomos obrigados, inevitavelmente, a pensar. Porque é a morte, o impensável, que obriga a pensar no essencial: o que é morrer?, o que é estar morto?, para onde vão os mortos?, “onde estarei quando deixar de existir?” (Tolstoi), “que morto serei para os que me sobreviverem?” (Paul Ricoeur), o que é existir autenticamente?, porque é que há algo e não nada?, para quê tudo?, qual é o sentido último da minha vida?, o que sou?, quem sou?, o que é que quero verdadeiramente ser?, o que é que autenticamente vale?

E agora? Vai ser diferente para o futuro? Mudámos de forma duradoura? Contra tantos que dizem que sim, eu, mesmo fazendo figura de pessimista, temo que esteja na cabeça da grande maioria, e no mais profundo, o desejo de voltar ao antes, à vida como era. Como escreveu o filósofo Abdennour Bidar, que já várias vezes aqui citei, “passar-se-á da anormalidade extraordinária do confinamento imóvel à anormalidade ordinária do corre-corre febril. Dois confinamentos, um em casa, o outro ‘fora de si’, numa existência dispersa que nada tem a ver com o essencial.” Desejo de voltar às máscaras da aparência, do ter, do poder, da corrupção, da sociedade da produção-consumo, que assenta a sua lógica no tabu da morte. Disso pura e simplesmente não se fala, há pudor em falar dela.

A morte
A morte

A morte desmascara e obriga a tirar as máscaras do parecer, da hipocrisia, da mentira, do medo de dizer a verdade, da cobardia, da competição feroz, das vaidades do ter e do poder pelo poder... Face à morte, como tudo o que não é essencial se torna pequeno! Martin Heidegger foi o filósofo do século XX que levou mais fundo o pensamento sobre a morte. O Homem é o ser da possibilidade, o existente para quem no seu ser a questão é esse mesmo ser, isto é, a quem o seu ser é dado como tarefa, como poder ser. Ora, a morte é a sua possibilidade “mais própria”, pois é a que mais o caracteriza, “irreferível”, pois corta a relação com tudo o resto, remetendo-o para si próprio, “intranscendível”, pois, enquanto possibilidade da impossibilidade, é a possibilidade extrema, a que se não pode escapar. A tentação permanente é distrair-se e não assumir a morte como essa possibilidade mais própria, irreferível, intranscendível, escapando-lhe pelo palavreado tagarela, pelo fazer como toda a gente faz, pelo recurso ao “toda a gente morre”, mas não propriamente eu. O Homem cai então no esquecimento de si mesmo e perde-se numa existência inautêntica.

Nas nossas sociedades tecnocientíficas e citadinas, a morte tornou-se tabu, o último tabu. Mas, ao perder o sentido da morte, perde-se o sentido da vida e o sentido da filosofia e da religião — sem a morte e a consciência dela, haveria religião e filosofia? E perde-se também o sentido ético: de facto, sem a consciência do limite no tempo, não se ergueria a questão ética na sua urgência da liberdade na definitividade. É o pensamento sadio da morte que obriga a distinguir entre o bem e o mal, entre o justo e o injusto, o que verdadeiramente vale e o que não vale, entre a superficialidade e o definitivo. E que dá o horizonte da fraternidade, como viu também o filósofo Herbert Marcuse, autor da obra célebre e marcante dos anos 1960, O Homem unidimensional, denunciando a redução do Humanum a uma só dimensão: a de consumidor entregue à cultura consumista, ao prazer e ao divertimento segundo padrões estandardizados. À beira de morrer, disse Marcuse ao amigo Jürgen Habermas: “Sabes, Jürgen? Agora, sei onde se fundamentam os nossos valores e juízos morais: na compaixão.”

Lídia Jorge, a grande escritora, marcada pela morte recente da mãe, de quem não se pôde despedir, tem razão: “Não somos nada enquanto não estivermos preparados para morrer.”

Este pensamento nada tem a ver com menosprezo pela vida e pela alegria de viver. Pelo contrário, ele remete-nos para a vida na sua exaltação exultante. Viver quando? Precisamente agora, intensamente. Que cada instante seja um hino à vida no seu esplendor, no milagre de ser e viver!... Na liberdade toda, na serenidade combativa, sem máscaras para nós nem diante de ninguém.

Poderá então erguer-se um outro pensamento, que vem de outro filósofo maior do século XX, Paul Ricoeur, que morreu há 15 anos, precisamente no dia 20 de Maio de 2005, com 92 anos. Poucas semanas antes de morrer, diz-nos Catherine Portevin, escreveu a uma amiga: “Do fundo da vida, surge um poder, um poder que diz que o ser é ser contra a morte. Acredite nisso comigo.”

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