"Quando começará a Igreja a respeitar a igualdade de direitos da mulher no seu seio?" Declaração sobre a dignidade humana (II)
"Que dizer na situação de uma mulher que quer muito ter um filho, não tem útero e uma familiar lhe empresta generosamente o seu?"
| Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia
Como vimos, segundo Dignitas infinita (Dignidade infinita), Declaração aprovada pelo Papa Francisco, a dignidade humana é “ontológica”, inalienável.
Infelizmente, essa dignidade nem sempre é respeitada. E o documento dá exemplos de “violações graves”: “tudo o que atenta contra a própria vida, como todo o tipo de homicídio, o genocídio, o aborto, a eutanásia e o próprio suicídio deliberado”, tudo o que atenta contra a integridade da pessoa, como as mutilações, as torturas infligidas ao corpo e ao espírito, as coações psicológicas, as condições de vida infra-humana, as detenções arbitrárias, a deportação, a escravatura, a prostituição, “as condições laborais ignominiosas nas quais os trabalhadores são tratados como meros instrumentos de lucro, e não como pessoas livres e responsáveis.”, a pena de morte — aqui, não posso deixar de lamentar que até muito recentemente o Catecismo da Igreja Católica a defendeu.
O documento, embora reconhecendo que há uma aspiração crescente para erradicar o racismo, a marginalização das mulheres, a xenofobia..., quer concretizar as violações. Assim, em síntese e com algumas observações pessoais:
O drama da pobreza. É preciso reconhecer que se trata de “um dos fenómenos que mais contribuem para negar a dignidade de tantos seres humanos”, “constituindo mesmo uma das maiores injustiças do mundo contemporâneo”.
A guerra. Com a sua loucura de destruição e dor, a guerra “atenta contra a dignidade a curto e a longo prazo”. Ela é sempre uma “derrota da humanidade”. E cada vez mais nos apercebemos de que está em curso “a terceira guerra mundial em etapas” e que podemos pôr fim à sobrevivência da humanidade e da casa comum.
A emigração. Os emigrantes “estão entre as primeiras vítimas das múltiplas formas de pobreza”.
O tráfico de pessoas. “Uma vergonha para as nossas sociedades que se consideram civilizadas”, “um crime contra a humanidade”, que desumaniza quem o leva a cabo.
Os abusos sexuais. É imperioso compreender que “todo o abuso sexual deixa profundas cicatrizes no coração de quem o sofre”, causa “sofrimentos que podem ficar para a vida inteira e aos quais nenhum arrependimento pode pôr remédio.”
Aqui, faço notar que só posso sintonizar com a medida de compensação financeira tomada pela Conferência Episcopal em relação a casos de pedofilia na Igreja.
A violência contra as mulheres. Desgraçadamente, trata-se de “um escândalo global”. Impõe-se acabar com a discriminação: “é urgente alcançar em todas as partes a efectiva igualdade dos direitos da pessoa”, incluindo a igualdade de salário para trabalho igual. Evidentemente, “nunca se condenará de forma suficiente o fenómeno do feminicídio”.
Aqui, tenho de perguntar: Quando começará a Igreja a respeitar a igualdade de direitos da mulher no seu seio?
O aborto. Para a Igreja, “a dignidade de todo o ser humano tem um carácter intrínseco e vale desde o momento da sua concepção até à sua morte natural.” Lamenta a difusão de uma terminologia ambígua — para aborto, “interrupção da gravidez”, que “tende a esconder a sua verdadeira natureza e a atenuar a sua gravidade na opinião pública.”
Aqui, sublinho que há situações-limite e dramas brutais a não ignorar (em Portugal, o aborto é legal até às 10 semanas), mas quero manifestar a minha oposição à inclusão do aborto como um direito na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
A maternidade de substituição (barrigas de aluguer). “Ofende gravemente a dignidade da mulher e da criança, e baseia-se na exploração da situação de necessidade material da mãe. Um filho é sempre um dom e nunca objecto de um contrato.”
Pessoalmente, pergunto: Que dizer na situação de uma mulher que quer muito ter um filho, não tem útero e uma familiar lhe empresta generosamente o seu?
Eutanásia e suicídio assistido. O documento sublinha a importância dos “cuidados paliativos apropriados e evitando qualquer encarniçamento terapêutico ou intervenção desproporcionada”, mas é claro: “não há condições na ausência das quais a vida humana deixa de ser digna e possa, portanto, suprimir-se” e acrescenta: “ajudar o suicida a tirar a vida é uma ofensa objectiva contra a dignidade da pessoa que o pede.”
Neste contexto, denuncia “o descarte das pessoas com deficiência”.
A violência digital. Sublinha os benefícios das tecnologias digitais, ao mesmo tempo que chama a atenção para os seus imensos perigos: risco de dependência, notícias falsas, atentados à boa reputação, o cyberbullying, difusão da pornografia, exploração para fins sexuais ou jogos de azar. O ambiente digital pode tornar-se “um território de solidão, manipulação, exploração e violência, chegando até ao caso extremo de dark web”.
Mudança de sexo. A Declaração pronuncia-se claramente contra a criminalização dos homossexuais: “Deve-se denunciar como contrário à dignidade humana o facto de, em certos lugares, muitas pessoas serem encarceradas, torturadas e mesmo privadas do bem da vida unicamente por causa da sua orientação sexual”, como acontece em África, por vezes com apoio dos bispos.
Quanto à mudança de sexo, é necessário estar atento ao texto. De facto, vê nela uma ameaça à dignidade humana, mas não sem sublinhar: “como regra geral”, deixando, portanto, espaço para casos particulares, o que, como nota o jornal La Croix, constitui “uma marca do Papa que recebe regularmente grupos de pessoas transgénero.
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