"O mal é o espinho cravado na fé do crente" Sexta-Feira Santa: o calvário do mundo

Semana Santa
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"A brutalidade do mal, que nos faz gritar e nos esvazia a capacidade de pensar, tem uma expressão  terrível num passo célebre de Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski, quando Ivan refere a tortura exercida sobre as crianças"

"Na Sexta-Feira Santa histórica de há dois mil  anos, Jesus, inocente e condenado como blasfemo e subversivo, morreu a rezar esta pergunta in-finita que atravessa os séculos: “Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?”"

Jürgen Moltmann, o grande teólogo protestante com quem tive o privilégio de conversar mais de uma vez em Tubinga, que faleceu no ano transacto, escreveu que, na juventude, feito prisioneiro, na Segunda Guerra Mundial, embora não sendo particularmente crente e o que mais lhe apetecesse era comida, o que o capelão lhe ofereceu foi o Novo Testamento.

Leu-o e, a partir da experiência dramática por que estava a passar por causa do Nazismo, percebeu que ou Deus não existe mesmo ou então o Deus verdadeiro é o que se revela em Jesus Cristo pregado na cruz para dar testemunho da verdade e do amor incondicional. E foi dessa experiência que partiu para o estudo da Teologia, tendo escrito obras que a marcaram no século XX: O Deus crucificado e Teologia da esperança, entre outras. 

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Com o terramoto de Lisboa, aconteceu um sismo no pensamento europeu, que abalou os grandes intelectuais. A famosa Teodiceia de Leibniz afundava-se. Como é que este podia ser o melhor dos mundos possíveis? E como pode a razão finita justificar Deus frente ao mal, pois é isso que pretende a teodiceia? O  mal físico talvez seja explicável; mas como  compreender o mal moral? Porque é que não somos sempre bons e, pelo contrário, criamos infernos de desumanidade? Há aquele enigma que amargurava São Paulo: “Ai de mim, que sou um homem desgraçado, pois faço o mal que não quero e não faço o bem que quero!”

A brutalidade do mal, que nos faz gritar e nos esvazia a capacidade de pensar, tem uma expressão  terrível num passo célebre de Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski, quando Ivan refere a tortura exercida sobre as crianças. Ele conta a história estarrecedora de um menino de oito anos que, um dia, quando se divertia a arremessar pedras, feriu na pata um dos cães favoritos de um antigo general, tendo, por isso, de passar a noite na masmorra. No dia seguinte, arrancado à mãe e completamente nu, é obrigado a correr. Como se de caça se tratasse, o general lança sobre o miúdo toda a matilha, perante o olhar aterrorizado e impotente da mãe.

Ivan diz que precisa de uma compensação, pois de outra forma destruir-se-á. Mas quer que ela seja aqui em baixo, “uma compensação que eu veja”. 

Ele quer estar presente, “quando todos souberem o porquê das coisas.” Mas como compreender qual possa ser o papel das crianças que sofrem para concorrerem para a harmonia eterna futura? “Compreendo a solidariedade do pecado e do castigo, mas não se pode aplicá-la aos inocentes”, diz. 

No final da História, Deus revelará os seus desígnios, e tudo ficará iluminado. Ivan recusa-se, porém, a aceitar essa harmonia superior, uma vez que não elimina o horror do sofrimento das crianças. “Acho que não vale uma lágrima de criança”. Ele não quer, portanto, entrar nessa harmonia última, pois o seu preço é exagerado. “Acho melhor devolver o bilhete... E é o que eu faço. Não me nego a admitir Deus, mas devolvo-lhe respeitosamente o meu bilhete.”  

O mal é o espinho cravado na fé do crente. Perante o horror do mundo e face à morte, não se sabe quantas pessoas, se fosse possível escolher vir ou não à existência  —claro, é um pensamento-limite e, em última análise, absurdo  —, teriam escolhido existir. 

Quem algum dia foi a Auschwitz fica estarrecido, mudo, sem palavras. Ali, é o horror pura e simplesmente. Mas também houve generosidades puras e quem caminhasse para as câmaras de gás com uma oração nos lábios.

Quem nega Deus também é confrontado com a pergunta dilacerante do mal. E é necessário tomar a sério o ateu e a sua convicção. Ignacio Sotelo, o filósofo espanhol agnóstico, escreveu numa troca de cartas com o teólogo J. I. González Faus, recentemente falecido: “a vida é uma luta que, por muito que nos esforcemos, está perdida à partida – desapareceremos no nada e os verdugos continuarão a dominar – e, no entanto, sustenta-nos a convicção de que não podemos abandonar o combate sem nos aniquilarmos a nós mesmos. Viver é lutar pela justiça, sabendo que a batalha está perdida à partida e que não podemos abandonar o combate.”

O crente que sabe o que quer dizer a fé participa no mesmo combate pela justiça. Mas ousa entregar-se confiadamente ao Mistério último de Deus. A História do mundo é um processo que ainda não transitou em julgado, e o crente confia, sem ingenuidade e convivendo com a dúvida, em que o juízo definitivo será de salvação para todos.

Na Sexta-Feira Santa histórica de há dois mil  anos, Jesus, inocente e condenado como blasfemo e subversivo, morreu a rezar esta pergunta in-finita que atravessa os séculos: “Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?” Mas as suas últimas palavras foram de esperança confiada no Mistério da Bondade radical: “Pai, entrego-me nas tuas mãos”. 

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