1º DTQ: DESERTO, tempo de des-velamento interior... (Cf. Pe. A. Palaoro SJ)

Ao iniciarmos a Quaresma, um lugar que continuamente será citado e que vai aparecer com frequência nos textos, reflexões e orações, é o “deserto”. Deserto que faz parte de nossas vidas: espaço de silêncio, de busca, de despojamento; lugar que nos faz tomar consciência das coisas essenciais que dão sentido à nossa existência; ambiente privilegiado para o encontro com o Deus.

Como humanos precisamos passar por experiências de despojamento, de esvaziamento, de vulnerabilidade, de crise para poder suavizar nosso coração e fazer-nos mais expansivos.

O “deserto” é o lugar das perguntas e do discernimento; ele nos sacode e nos desnuda, porque desmascara nossas falsas seguranças. O deserto nos conduz para o Fundo estável e sereno, nossa “casa” e verdadeira identidade. Quando o percurso é vivido adequadamente, é provável que no final possamos dizer como Kierkegaard, “eu teria me afundado se não tivesse ido ao Fundo”. Se somos sinceros, adentrar-nos em nosso “eu profundo” não é fácil e até sentimos medo.

A liturgia quaresmal revela-se como uma mediação privilegiada para potencializar nossa interioridade, para que a expansão da vida seja possível. Tal experiência oxigena a nossa mente e implode nosso conformismo e revela-se como fonte inspiradora que nos liberta da rotina. Somos peregrinos, deslocando-nos no traçado da existência em busca de respostas que deem sentido à existência.

O caminho para Deus passa pela experiência mais profunda e autêntica de si mesmo. Buscar o Deus que “está dentro de mim, enquanto eu estou fora” (S. Agostinho), significa entrar em relação direta com nosso interior; dissolver bloqueios afetivos já solidificados.

Foi no deserto onde Jesus descobriu o que move verdadeiramente o coração do ser humano. Jesus tomou consciência de duas forças ou dinamismos que atuam no coração humano: um de expansão, de saída de si, de vida aberta e em sintonia com o Pai e com os outros; outro, de retração, de auto-centração, de busca de poder, prestígio, vaidade...

Jesus impulsionado pelo Espíritos sentiu as forças do mal: “foi tentado por satanás”, “o adversário”, a força hostil a Deus. Na tentação des-vela o que há em nós de verdade ou de mentira, de luz ou de trevas, de fidelidade a Deus ou de cumplicidade com a injustiça. Qual dos dois dinamismos internos alimentamos?

Em todo processo de crescimento vamos nos deparar com a presença dos “animais selvagens” e dos “anjos” em nosso eu profundo. É assim que vislumbramos quando nos adentramos em nosso mundo interior. “Animais selvagens”: material psíquico reprimido que não aceitamos em nosso interior: paixões, traumas, feridas, instintos, impotência e fragilidade... É a “sombra” que vamos arrastando, e que nos assusta enquanto não a reconhecemos em sua totalidade.

“Anjos”: forças internas positivas, consolos – externos e internos – que pacificam, animam, iluminam, fortalecem e unificam...

“Animais selvagens e anjos” nos “obrigam” avançar para nossa verdade profunda, tirando-nos da superfície de nós mesmos, ou da nossa “zona de conforto”.
O amadurecimento humano implica acolher nossa realidade, também aquela que aparece sob disfarces negativos. Lidar com tais “feras” requer dialogar com elas, para amansá-las.

A espiritualidade cristã mostra que em nossas feridas cicatrizadas encontramos a verdadeira vida. Tradicionalmente, fomos coagidos a viver uma espiritualidade que `matava´ ou prendia os “animais selvagens”, e a levantar junto deles um edifício instável de “grandes ideais”. Daí o medo das feras e a frustração com nossas misérias. Tudo quanto reprimimos explode. Os “animais selvagens” tem muita força, nos obrigam a fugir constantemente de nós.

Os “anjos” permitem acolher e domesticar os “animais selvagens”, tomando consciência de que o nosso interior é forte e se expande.

E assim, estaremos mais preparados para a “travessia” em direção à Páscoa.
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