O novo governo do Brasil: contradição e iniquidade
Toda politica econômica social tem seu fundamento numa concepção do homem. O ser humano para o liberalismo e o neoliberalismo, a partir dos fundamentos estabelecidos por Locke, Bentham, Smith, Mill, Hayek e outros, é essencialmente egoísta, individualista, motivado pelo prazer que se transforma em hedonismo e relativismo.
Para Hayek premio Nobel de 1974, o pensador mais relevante do neoliberalismo, ideologia hegemônica na atual globalização, o individuo é um fim em si mesmo. Procurando realizar seu próprio beneficio obtém o beneficio geral. O mercado autorregulado espontaneamente que não deve ser interferido levaria ao melhor dos mundos. Esta é uma visão mercado-centrista: tudo gira em torno do mercado. O mercado define tudo, não existe assim moral, nem justiça, nem direito.
Como escreve Urrutia León, da Universidade de Bilbao (Pensamiento, 72, 1217-45): “Em definitiva estamos em frente a uma verdadeira ‘fé terrenal’, ainda que se disfarce como científica”. A liberdade como a compreende Hayek, não é senão, submeter-se às leis do mercado. Isto nos leva a um claro totalitarismo mundial.
Este pensamento materialista, com uma utopia de que a liberdade total de mercado espontaneamente soluciona tudo, com semelhanças com o comunismo marxista e considerando ainda como fato científico está em contradição absoluta com qualquer religião: Cristã, Islâmica ou Judia, que são centradas em Deus.
Como explicar esta contradição? Devemos analisar o que é o fundamentalismo religioso. A ideia nasceu, evidentemente, no coração do capitalismo dos Estados Unidos. No inicio do século XX o americano Essek W. Kenyon (1867-1948), um metodista, descobriu o milagre da rádio e iniciou sua “Igreja no ar” e espalhou segundo o jornalista Luiz C. Cunha (cunha.luizclaudio@gmail.com, recomendo ler seu artigo “Os vendilhões dos templos eletrônicos em tempos de espertalhões da Fé”), o lema que explica as benesses divinas da fartura: “o que eu confesso, eu possuo”.
Kenyon passou seu bastão da prosperidade a um jovem texano: Kenneth Hagin que garantiu ter ido e voltado do céu e do inferno 3 vezes, nada menos, com 8 visões de Cristo e da divina revelação de que os fiéis deviam gozar de grande saúde financeira e que o caminho da fortuna passava pela prosperidade de seus profetas aqui na terra. Assim, conquistou corações, mentes e fundamentalmente: bolsos.
A primeira semente deste neopentecostalismo no Brasil foi a Igreja Universal do Reino de Deus, fundada em 1977 por Edir Macedo, que aproximadamente 40 anos depois é dono de uma fortuna estimada pela revista Forbes em 950 milhões de dólares, e dono da TV Record, a segunda de maior audiência do país. Em seguida vem Vladimir Santiago com 220 milhões de dólares, Silas Malafaia com 150 milhões, R.R. Soares com 125 milhões e Hernades da Igreja Renascer com 65 milhões.
A reforma protestante se deve a Lutero que pregou na Igreja de Wittenberg as suas 95 teses que desafiavam a autoridade do Papa, mostrando o desvio do caminho da Fé primitiva para o atalho da corrupção de venda de indulgências, o comércio de coisas sagradas, a luxúria dos Papas e Cardeais, etc. O jornalista Cunha afirma que se o velho Lutero observasse como exploram estes neopentecostais os coitados que acreditam nessa “doutrina pecuniária” o fariam “engolir cada uma das 95 teses que vomitou contra a cupidez da velha Roma”.
Pagola (“O caminho aberto por Jesus, Lucas” Vozes RJ 2012) explica este fenômeno: “A riqueza tem um poder subjugador irresistível. Quando o individuo entra na dinâmica de ganhar sempre mais....o dinheiro termina substituindo Deus e exigindo submissão absoluta”. Estes lideres neopentecostais da teologia da prosperidade trocaram o Deus verdadeiro da solidariedade, do amor, pelo Deus Dinheiro do interesse próprio. Pergunto: não corresponde isto ao mistério da iniquidade?
Como conseguir uma explicação do voto dos aparentes verdadeiros protestantes e católicos neste novo governo?
Este é um problema muito sério, que deve ser analisado com cuidado, e desde várias perspectivas. Eu somente desejo manifestar minha perspectiva como um aporte a uma visão mais geral.
1) Atualmente o jornalismo, a mídia controlada pelos poderosos estimula um fervor religioso pelo livre mercado. Explica Harvey Cox (Atlantic Monthly 283, n° 3, março 1999): “O léxico do The Wall Street Journal e as seções de negócios de Time e Newsweek tem uma notável semelhança com o Genesis, a epístola aos Romanos e a cidade de Deus de Santo Agostinho. Qualquer posição em contrario é julgada como herética”;
Por isso, quando se pensa e se analisa criticamente, se observa por trás do disfarce de defesa da “democracia”, dos direitos humanos, da luta contra a droga, a crua “mentira”, pois apoiam os governos mais totalitários como Arábia Saudita, ajudam as plantações de Amapola (heroína) no Afeganistão, e controlam a produção de cocaína na Colômbia.
3) Os cristãos protestantes ou católicos “não observam os sinais dos tempos”, porque como escreve Pagola, “não se pode anunciar nem viver o Evangelho de Jesus senão a partir da defesa dos excluídos e da solidariedade com o Sul. Não é qualquer teologia, nem qualquer evangelização, nem qualquer ação pastoral que é igualmente fiel ao Espirito de Jesus”. “A teologia é ‘discurso vazio’ se não leva a boa nova de Deus aos pobres ... se não denuncia a injustiça que gera marginalização; a pastoral se esvazia de conteúdo cristão e se esquece o serviço aos últimos”.
Um clericalismo burguês há levado a Igreja Católica a não estimular laicos que sejam protagonistas da historia para construir um mundo melhor, por isso, o conhecido teólogo alemão, Metz escreve que devemos nos decidir entre uma “religião burguesa” ou um “cristianismo de seguimento” para construir o Reino de Deus.
A CNNB emitiu uma nota donde pede aos católicos votar naqueles que ajudem a preservar, e não a destruir, sistemas democráticos.
Evidentemente, não consideraram o pensamento do filosofo Italiano Giorgio Agambem que escreveu: “Devemos profanar esta democracia que profana o ser humano. Deus não morreu, ele se transformou em dinheiro”. Ele explica a função religiosa que tem tomado o capitalismo, com uma violência economicista que se presenta como dogma. Não podemos nos enganar, religião e politica sempre estivaram relacionadas.
Para Agambem profanar significa restituir aos homens algo que foi retirado do uso comum. A “democracia real” que se fundamenta em igualdade real do comum, que é o produto do trabalho de uma sociedade, foi totalmente desvirtuada pelo principio da “representação”. Que separa aos que tem voz nas instituições daqueles que nunca são ouvidos. Assim se transformou somente em comícios eleitorais que pelo geral ganha quem tem mais dinheiro.
Desta forma, a democracia que atualmente representa só o poder financeiro, não é mais que uma plutocracia. A indústria de relações públicas que nasceu em 1920 em EEUU produz atualmente consentimentos, aceitação e submissão. A democracia representativa foi sacralizada, é algo intocável, que não pode ser modificado.
É muito preocupante observar católicos e protestantes, de classe média, serem seduzidos pelas mentiras difundidas pela mídia, e não se preocuparem com saber a verdade e a justiça em cada tempo histórico, apoiando assim este sistema capitalista de morte. Morrem aproximadamente 25 mil pessoas por dia de fome, se estima que 8.500 crianças morram ao dia por desnutrição severa e 160 milhões de crianças sofram de raquitismo num mundo que possui todos os recursos para superar este problema com facilidade, enquanto isso, existem 686 milhões de obesos e 1.650 milhões com sobrepeso.
A estes cristãos o Papa Francisco fala (caminho da cruz com os jovens na JMJ Panamá, 25/01/2019) “Somos levados pela apatia e imobilidade” e “Não são poucas as vezes que o ‘conformismo’ nos vence e paralisa” e assim confessou que “nos olhamos para longe para não ver, nos refugiamos no barulho para não ouvir, nos cobrimos a boca para não gritar”.
Mas, como quase ninguém escuta ao Papa, para o clericalismo burocrata sua fala entra por um ouvido e sai pelo outro, e até existem grupos conservadores que o criticam, considerando os sinais dos tempos e o poder financeiro concentrado que existe atualmente, com sua capacidade de persuasão, a pergunta agora seria: seremos seduzidos igualmente a dizer frente aos novos Pilatos: “Não temos outro rei senão César”? Ou como lamentavelmente muitos de nossos presidentes de América Latina gritam: “não temos outro rei senão Trump”?
Mons Angelleli, mártir da ditadura militar Argentina, explicava “a igreja deverá jogar-se, se fosse necessário ate o martírio, para cumprir sua missão, no sentido de que os homens e os povos sejam sempre templos de Deus e sejam tratados como tais”. Este sistema está profanando os templos de Deus, que são as pessoas humanas, porque como observamos engana e mata.
Assim, a pergunta gravíssima neste momento é: Devemos jogar-nos neste momento, talvez decisivo, ou esperar como burgueses, no sentido mais pejorativo da palavra, que a falsificação democrática seja trocada pela sua mais escura realidade? Sombria realidade de um totalitarismo anticristão que explica as contradições de um sistema ateu disfarçado de procurar o bem de todos, enquanto segrega e mata, de um Império com dois cornos de cordeiro (aparentemente cristão), mas que fala como dragão, e de uma democracia que profana o ser humano e que substituiu Deus pelo dinheiro, mostrando claramente o mistério da iniquidade.